Desejo é, no mínimo, duplo e é inevitavelmente contraditório. Toda e qualquer voz é voz de multidão. Tem gozo que dói. Dá pra ouvir aquilo que não tem palavra? No fim, o que importa é sempre sobre amor. Para um bom ouvinte, toda fala é um convite a entrega. É preciso dizer que escutar é algo que a gente faz com o corpo todinho mesmo. Só existe vida onde existe arte – e isso é seríssimo. O que é mais triste na tristeza é a compulsão a evitação daquilo que dói. A alegria não é uma obrigação, ela é, ou deveria ser, possibilidade – tristeza e raiva também. Tem silêncio que grita; tem euforia discursiva que é pura mudez.
Em análise, o que constitui o privado é a contratualidade do sigilo; o resultado analítico mais valioso é o desejo pelo compartilhamento: sinônimo de vida. Compartilhar-se é se fazer vivo ao se esvaziar e se encher um pouco de si.
Afinal, qual o preço que a gente paga, ou melhor, o que de nós é aprisionado quando somos alvo do olhar do outro? Seja qual for o olhar lançado sobre nós, a gente sabe que ele sempre espera algo – ele funda a gente porque nos provoca a se enxergar no reflexo desse outro que está fora. “O que ele quer de mim?”, “o que ele está vendo e como devo me portar agora?”. O hiato entre o que esse Outro espera e o que eu acho que sou produz a sensação errante da existência – ser é sempre a morte da expectativa: existir é um delito. Às vezes a angústia nasce daí e muitas vezes é difícil sustentar ela, e por isso a gente se isola, não sai de casa, não dá sinal de vida pra ninguém: a gente apequena a existência porque compartilhar é sempre um tanto violento, sobretudo porque faz a gente se deparar com os nossos buracos.
Para a psicanálise, vazio não é matéria negativa, é espaço de movimento e, portanto, vazio é operação soma. O analista provavelmente não sabe aquilo que o outro supõem que se é sabido, mas dispõem de desejo de saber. Ao deitar-se no divã – assim como quando se lança ao mundo – o sujeito põe em trabalho aquilo que mostra, aquilo que o outro vê, aquilo que escapa dos dois e, por fim, com o que se produz com o que se encontra. A análise não é dever ou compromisso formal e frio, muito menos salvação divina ou cura médica asséptica – a análise é um agenciamento potente, uma contingência ética - um suspiro. A análise é o desejo de se ter notícias sobre o desejo. É, sobretudo, fazer-se curioso e transpor o mundo em palavras.
Ao fim e ao cabo, observar e tentar entender o que nos rodeia é um exercício constitutivo da existência humana e é a partir daí que construímos ciência e cultura. O processo de transformação do empírico para a linguagem é o que, dentre outras coisas, guarda a história da nossa humanidade e, se olhado atentamente, nos indica a matéria que nos possibilita ver o mundo.
Aí nos deparamos com uma virada interessante: o inconsciente não é um lugar profundo, guardado a sete chaves em um poço escuro. Ele se esconde é na superfície daquilo que é dito, na palavra atenta, na dialética entre o que de mais íntimo e mais coletivo há em cada palavra que dispomos para usar como ferramenta da tarefa árdua que é existir.
Na análise a gente ganha e dá palavra – enlaça o sentido do agora com sua história e dá recheio para a língua.
É interessante pensar que fitar com atenção os astros é um ato milenar e que também ganhou sua palavra: Considerare – que deu origem a palavra em português Considerar. O astrólogo considerava os astros. Acontece que a palavra ganhou tempo e extensão - agora quando refletimos sobre algo, alguém ou sobre si, nós consideramos também. Não mais só os astros, mas tudo que nos rodeia. Considerare também remete ao movimento natural das coisas; o que nos possibilitou criar mapas siderais e entender as constelações. E é aqui que chegamos na palavra Desiderare.
Desiderare pode ser entendido como aquilo que foge do movimento previsto e é também a origem da palavra Desejar. Seguindo nosso caminho, podemos concluir que desejar é desviar da rota: o desejo é o que nos rouba do traçado repetido e determinado.
Bonito, não? Mais bonito ainda é quando vemos que a psicanálise casa a palavra com o ato quando Freud afirma que somos seres perversos e polimorfos. Ou seja, que por excelência somos seres desviantes e mutáveis. Pervertemos os fluxos e movimentos previsíveis. Criamos novas rotas quando desejamos.
Cristiane Amaral
Psicóloga - CRP 07/29489