“... quando o carpinteiro tomava as medidas para o ataúde, viram pela janela que estava caindo uma chuvinha de minúsculas flores amarelas. Caíram por toda a noite sobre o povoado, numa tempestade silenciosa, e cobriram os tetos e taparam as portas, e sufocaram os animais que dormiam ao relento. Tantas flores caíram do céu que as ruas amanheceram atapetadas por uma colcha compacta, e eles tiveram que abrir caminho com pás e ancinhos para que o enterro pudesse passar.”
Cem anos de solidão - Gabriel García Marquez
Entre outras coisas, a Amazônia nos conjuga Latinoamérica. Estar nela é algo que só consegui nomear como um estar profundo.
Fico satisfeita com o inacabado da palavra…
Os mistérios das águas profundas e da queda do céu não são tangíveis, mas, se mantiver os olhos bem fechados confiando na noite, é possível perscrutá-los do lado de dentro da mata, do rio, de si.
Lembrei do Krenak quando disse que “as pessoas podem viver com o espírito da floresta, viver com a floresta, estar na floresta”, é que ela nos toma no tempo e no espaço, ainda que não nos apercebemos dela.
O que é escrito, é solidão na multidão de grafemas, o que é inscrito, transborda de pele para pele ou de inspiração por expiração. É do tempo do sonho.
A onipresença da floresta ancestral-verde-onírica não tem fronteira. É que não há rede onde o rizoma é wi-fi. Para conectar, é só tocar o olhar com esperança para qualquer natureza, até mesmo a humana. Isso vem das ideias para adiar o fim do mundo ou do peruano que sabia sobre sua descendência da montanha.
Por falar em humana, foi pela floresta que saí de mim e entrei no Realismo Fantástico que percorri li, vi e ouvi pelos caminhos colombianos.
Não eram camadas de sonhos, como supõem os surrealistas, mas a chuva dourada de diminutas flores amarelas; a real serpente que nasce na cordilheira e adormece no travesseiro do mar; a vasta gentileza com que Leopoldo, o colombiano que, quando vê um borracho adormecido em sua cama, empresta-lhe o sorriso constrangido e o sono; a profunda natureza humana: la soledad, de cem em cem anos.
A solidão é imanência. Pintura na memória que transpassa a história.
Uma língua da solidão, sobrevive no sonho. Narrar é impregnar a memória até que se possa ampliar o destino. É dos fragmentos que contamos o sangue e o suor plural. Estão nos muros, nos museus, na praça e em toda a gente: a ditadura e os falsos positivos, veias abertas, cor na música e sabor na dança… em qualquer parte.
A arte pungente no corpo e na corda bamba de ser social.
O avião pousa e uma lágrima me pergunta sobre seu destino: o solo na superfície dos pés?
Não sai de mim enquanto ouço Años na voz da América Latina.
Talvez seja isso, a floresta que me habita sem caber, porque é o que sou, e o Realismo fantástico que é meu território.
Rebeca Moreira (escrita e fotografia)
Referências e indicações
Indicação de leitura:
Davi Kopenawa - A queda do céu
Ailton Krenak - obras
Eduardo Viveiro de Castro - obra
As veias abertas da América Latina - Eduardo Galeano
Gabriel García Márquez - obra
Carola Saavedra - obra
Indicação de filmes:
O botão de pérola
O território
A última floresta
A Cordilheira
Argentina 1985
No
Uma noite de 12 anos
Machuca
Mariguella
Batismo de sangue
O que é isso companheiro
Deslembro
Narciso em férias