21 de dezembro de 2024
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Travessias Cotidianas

Sobre a travessia de ser latino-americana

Sobre a travessia de ser latino-americana

“... quando o carpinteiro tomava as medidas para o ataúde, viram pela janela que estava caindo uma chuvinha de minúsculas flores amarelas. Caíram por toda a noite sobre o povoado, numa tempestade silenciosa, e cobriram os tetos e taparam as portas, e sufocaram os animais que dormiam ao relento. Tantas flores caíram do céu que as ruas amanheceram atapetadas por uma colcha compacta, e eles tiveram que abrir caminho com pás e ancinhos para que o enterro pudesse passar.” 

Cem anos de solidão - Gabriel García Marquez

Entre outras coisas, a Amazônia nos conjuga Latinoamérica. Estar nela é algo que só consegui nomear como um estar profundo

Fico satisfeita com o inacabado da palavra… 

Os mistérios das águas profundas e da queda do céu não são tangíveis, mas, se mantiver os olhos bem fechados confiando na noite, é possível perscrutá-los do lado de dentro da mata, do rio, de si.

Lembrei do Krenak quando disse que “as pessoas podem viver com o espírito da floresta, viver com a floresta, estar na floresta”, é que ela nos toma no tempo e no espaço, ainda que não nos apercebemos dela.

O que é escrito, é solidão na multidão de grafemas, o que é inscrito, transborda de pele para pele ou de inspiração por expiração. É do tempo do sonho. 

A onipresença da floresta ancestral-verde-onírica não tem fronteira. É que não há rede onde o rizoma é wi-fi. Para conectar, é só tocar o olhar com esperança para qualquer natureza, até mesmo a humana. Isso vem das ideias para adiar o fim do mundo ou do peruano que sabia sobre sua descendência da montanha.

Por falar em humana, foi pela floresta que saí de mim e entrei no Realismo Fantástico que percorri li, vi e ouvi pelos caminhos colombianos.

Não eram camadas de sonhos, como supõem os surrealistas, mas a chuva dourada de diminutas flores amarelas; a real serpente que nasce na cordilheira e adormece no travesseiro do mar; a vasta gentileza com que Leopoldo, o colombiano que, quando vê um borracho adormecido em sua cama, empresta-lhe o sorriso constrangido e o sono; a profunda natureza humana: la soledad, de cem em cem anos.

A solidão é imanência. Pintura na memória que transpassa a história.

Uma língua da solidão, sobrevive no  sonho. Narrar é impregnar a memória até que se possa ampliar o destino. É dos fragmentos que contamos o sangue e o suor plural. Estão nos muros, nos museus, na praça e em toda a gente: a ditadura e os falsos positivos, veias abertas, cor na música e sabor na dança… em qualquer parte. 

A arte pungente no corpo e na corda bamba de ser social.

O avião pousa e uma lágrima me pergunta sobre seu destino: o solo na superfície dos pés?

Não sai de mim enquanto ouço Años na voz da América Latina. 

Talvez seja isso, a floresta que me habita sem caber, porque é o que sou, e o Realismo fantástico que é meu território.

Rebeca Moreira (escrita e fotografia)

 

Referências e indicações

Indicação de leitura:

Davi Kopenawa - A queda do céu

Ailton Krenak - obras

Eduardo Viveiro de Castro - obra

As veias abertas da América Latina - Eduardo Galeano

Gabriel García Márquez - obra

Carola Saavedra - obra

 

Indicação de filmes:

O botão de pérola

O território

A última floresta 

A Cordilheira

Argentina 1985 

No 

Uma noite de 12 anos 

Machuca 

Mariguella 

Batismo de sangue

O que é isso companheiro

Deslembro

Narciso em férias

 

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