Hoje a travessia será musical: o que você anda ouvindo?
Digo por mim, atravessada pela MPB, direto me ecoa um samba.
Aparece o grito: negra sim! Poder em si.
Vou falar da força da música.
O suportar-saber-superar-somar-ser-som.
Não tem limite a palavra.
Não tem previsão o humano, mas tem precisão: o Milton Nascimento.
Esse que agora roda mundialmente sua turnê final denominada: A última sessão de música.
– Que nome mais importante!
Seja pela boca ou mãos, corpo e som têm uma íntima relação. O sujeito que significa e, na melodia, expressa emoções com o uso de seu corpo. Milton decidiu fazer uma parada: escutou seu corpo-emoção.
Propriamente, Freud postulou essa peculiar relação da arte e com as emoções (de morte ou de vida), e, sendo possível, estabelecer exercícios do inconsciente.
Nesse sentido, tratamos aqui do sintoma social que é o racismo, provocado também pelo inconsciente. Apresentando significados da música no caminhar da letra para provocar pensamentos. Haja vista que as práticas racistas são assombrosas demais e a potência do resistir humano se faz presente, com a música, podemos deixar a luta mais leve e não menos real.
Do racismo como sintoma social traçamos a sutileza que podemos obter da arte sonora. Música e ser humano, um princípio desde a pré-história. Música: palavras, sons e ritmos... Formas que atingem pontos cerebrais ainda não categorizados combinam com o inconsciente que precisa de técnica e atenção para o “conectado” (chistes, lapsos, sonhos…).
Apesar de pouco falar sobre a musicalidade, coube também a Lacan trazer uma abertura para a música na psicanálise, principalmente ao situar a voz como objeto pulsional de modo a inseri-la no rol dos objetos primordiais. Chegou até a perceber a importância disso quando, no Seminário 20, advertiu que "seria preciso, alguma vez, falar da música; não sei se jamais terei tempo" (LACAN, 1972-1973/1982, p. 158). Infelizmente não teve esse tempo, mas a oportunidade nos cabe.
Energias psíquicas, constantemente pulsões projetadas, descarregadas... O eu que imagina cria o discurso de um inconsciente reverberado no musical. Músicas são linguagens. Uma melodia que carrega experiência, a letra escolhida apresenta algo de familiar do país tupiniquim, o real de ter sido o último das Américas a abolir o processo de escravização, e os traumas vão sendo digeridos, reformulados e combatidos.
Aqui propomos uma emancipação pelo som, seja para balançar a cabeça dos não negros, seja para aquecer o corpo-mente da gente preta. Possibilitando assim que os sujeitos entendam como esse sistema racial funciona e encontre caminhos para romper. Em acordo com Fanon (2008), acreditamos que identificar o racismo não é algo de mistério ou dificuldade, pois este está posto; a questão é querer ver ou não. Do racismo que aparece a partir do século XIX, temos raças, e umas são pensadas, outras não.
Vamos ao som!
De uma violência diária exposta e um tanto de energia envolvida é preciso recarregar ou expulsar. E de onde podemos buscar essa força? Uns acreditam em Deus ou outros Deuses. Elis Regina, cantora brasileira, considerada como a grande intérprete de todos os tempos, dizia que, se Deus cantasse, teria a voz de Milton Nascimento. Assim, manifestamos um canto completo que na voz desse sublime trovador movimenta estruturas e forma forças subjetivas. Colocar um fone e sentir esse som é um experimento elevado de sentidos e cada um diz seu significado. Uma composição perante histórias negras que tem o nome de “raça”.
Lá vem a força, lá vem a magia
Que me incendeia o corpo de alegria
Lá vem a santa maldita euforia
Que me alucina, me joga e me rodopia
Lá vem o canto, o berro de fera
Lá vem a voz de qualquer primavera
Lá vem a unha rasgando a garganta
A fome, a fúria, o sangue que já se levanta
De onde vem essa coisa tão minha
Que me aquece e me faz carinho?
De onde vem essa coisa tão crua
Que me acorda e me põe no meio da rua?
É um lamento, um canto mais puro
Que me ilumina a casa escura
É minha força, é nossa energia
Que vem de longe prá nos fazer companhia
É Clementina cantando bonito
As aventuras do seu povo aflito
É Seu Francisco, boné e cachimbo
Me ensinando que a luta é mesmo comigo
Todas Marias, Maria Dominga
Atraca Vilma e Tia Hercília
É Monsueto e é Grande Otelo
Atraca, atraca que o Naná vem chegando
(NASCIMENTO & BRANT, 1976).
Essa toada de Nascimento e Brant funciona como uma cantiga, uma mistura de ritmos que lembra uma roda em constante movimento, e que nos segundos sonoros vão aparecendo outros componentes para fazer o conjunto celestial.
Milton chama para trabalharmos em conjunto, o que nos apresenta o jogo da vida, melodia forte com vozes que se entrançam para fazer dessa música uma estrutura em versos que trazem respostas para o enfrentamento do dia a dia do sujeito negro, e abrimos, de todos os sujeitos. Raça aparece como energia, força, sabedoria, luz, saúde e dança, formas propícias na existência do real.
Não podemos negligenciar que nesta canção temos: "É Seu Francisco, boné e cachimbo me ensinando que a luta é mesmo comigo”. Uma profundidade psicanalítica, a responsabilidade de si, ainda mais, esse destaque demonstra uma experiência religiosa afro-brasileira. De um passado construído por repressão, luta, fuga, criação e outras formas não nomináveis. A fé de uma matriz negra apresenta condutas que movem o sujeito, sendo que não é possível caracterizar uma religião legítima, mas são vivenciadas cotidianamente aquelas que são aceitáveis.
Afinal: O que não dá mais pra aceitar?
Como se descaracterizar?
Vamos lá,
1,2,3: Som…
Indicação:
Lista de música do Spotify: Significado, música e negritude
Referências:
LACAN, J. (1972-1973/1982) O Seminário livro 20, Mais, ainda. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.
FANON, F. (2008) Pele negra, máscaras brancas. Salvador: Edufba.
NASCIMENTO, M.; BRANT, F. (1976). Raça. Disponível em: https://www.letras.mus.br/milton-nascimento/843341/. Acesso em: 03 nov 2020.
Autora: Karoline M. de Oliveira (Karô Castanha)
Psicóloga - CRP 14/06647-2
Fotografia: Rebeca Moreira