27 de dezembro de 2024
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Travessias Cotidianas

Movimentar o pensamento pelo som

Movimentar o pensamento pelo som

Hoje a travessia será musical: o que você anda ouvindo? 

Digo por mim, atravessada pela MPB, direto me ecoa um samba.

Aparece o grito: negra sim! Poder em si. 

Vou falar da força da música. 

O suportar-saber-superar-somar-ser-som. 

 

Não tem limite a palavra. 

Não tem previsão o humano, mas tem precisão: o Milton Nascimento. 

Esse que agora roda mundialmente sua turnê final denominada: A última sessão de música. 

 Que nome mais importante! 

Seja pela boca ou mãos, corpo e som têm uma íntima relação. O sujeito que significa e, na melodia, expressa emoções com o uso de seu corpo. Milton decidiu fazer uma parada: escutou seu corpo-emoção. 

Propriamente, Freud postulou essa peculiar relação da arte e com as emoções (de morte ou de vida), e, sendo possível, estabelecer exercícios do inconsciente. 

Nesse sentido, tratamos aqui do sintoma social que é o racismo, provocado também pelo inconsciente. Apresentando significados da música no caminhar da letra para provocar pensamentos. Haja vista que as práticas racistas são assombrosas demais e a potência do resistir humano se faz presente, com a música, podemos deixar a luta mais leve e não menos real. 

Do racismo como sintoma social traçamos a sutileza que podemos obter da arte sonora. Música e ser humano, um princípio desde a pré-história. Música: palavras, sons e ritmos... Formas que atingem pontos cerebrais ainda não categorizados combinam com o inconsciente que precisa de técnica e atenção para o “conectado” (chistes, lapsos, sonhos…).

Apesar de pouco falar sobre a musicalidade, coube também a Lacan trazer uma abertura para a música na  psicanálise, principalmente ao situar a voz como objeto pulsional de modo a inseri-la no rol dos objetos primordiais. Chegou até a perceber a importância disso quando, no Seminário 20, advertiu que "seria preciso, alguma vez, falar da música; não sei se jamais terei tempo" (LACAN, 1972-1973/1982, p. 158). Infelizmente não teve esse tempo, mas a oportunidade nos cabe.

Energias psíquicas, constantemente pulsões projetadas, descarregadas... O eu que imagina cria o discurso de um inconsciente reverberado no musical. Músicas são linguagens. Uma melodia que carrega experiência, a letra escolhida apresenta algo de familiar do país tupiniquim, o real de ter sido o último das Américas a abolir o processo de escravização, e os traumas vão sendo digeridos, reformulados e combatidos.

Aqui propomos uma emancipação pelo som, seja para balançar a cabeça dos não negros, seja para aquecer o corpo-mente da gente preta. Possibilitando assim que os sujeitos entendam como esse sistema racial funciona e encontre caminhos para romper. Em acordo com Fanon (2008), acreditamos que identificar o racismo não é algo de mistério ou dificuldade, pois este está posto; a questão é querer ver ou não. Do racismo que aparece a partir do século XIX, temos raças, e umas são pensadas, outras não. 

Vamos ao som! 

De uma violência diária exposta e um tanto de energia envolvida é preciso recarregar ou expulsar. E de onde podemos buscar essa força? Uns acreditam em Deus ou outros Deuses. Elis Regina, cantora brasileira, considerada como a grande intérprete de todos os tempos, dizia que, se Deus cantasse, teria a voz de Milton Nascimento. Assim, manifestamos um canto completo que na voz desse sublime trovador movimenta estruturas e forma forças subjetivas. Colocar um fone e sentir esse som é um experimento elevado de sentidos e cada um diz seu significado. Uma composição perante histórias negras que tem o nome de “raça”.

Lá vem a força, lá vem a magia

Que me incendeia o corpo de alegria

Lá vem a santa maldita euforia

Que me alucina, me joga e me rodopia

Lá vem o canto, o berro de fera

Lá vem a voz de qualquer primavera

Lá vem a unha rasgando a garganta

A fome, a fúria, o sangue que já se levanta

De onde vem essa coisa tão minha

Que me aquece e me faz carinho?

De onde vem essa coisa tão crua

Que me acorda e me põe no meio da rua?

É um lamento, um canto mais puro

Que me ilumina a casa escura

É minha força, é nossa energia

Que vem de longe prá nos fazer companhia

É Clementina cantando bonito

As aventuras do seu povo aflito

É Seu Francisco, boné e cachimbo

Me ensinando que a luta é mesmo comigo

Todas Marias, Maria Dominga

Atraca Vilma e Tia Hercília

É Monsueto e é Grande Otelo

Atraca, atraca que o Naná vem chegando 

(NASCIMENTO & BRANT, 1976).

Essa toada de Nascimento e Brant funciona como uma cantiga, uma mistura de ritmos que lembra uma roda em constante movimento, e que nos segundos sonoros vão aparecendo outros componentes para fazer o conjunto celestial. 

Milton chama para trabalharmos em conjunto, o que nos apresenta o jogo da vida, melodia forte com vozes que se entrançam para fazer dessa música uma estrutura em versos que trazem respostas para o enfrentamento do dia a dia do sujeito negro, e abrimos, de todos os sujeitos. Raça aparece como energia, força, sabedoria, luz, saúde e dança, formas propícias na existência do real.

Não podemos negligenciar que nesta canção temos: "É Seu Francisco, boné e cachimbo me ensinando que a luta é mesmo comigo”. Uma profundidade psicanalítica, a responsabilidade de si, ainda mais, esse destaque demonstra uma experiência religiosa afro-brasileira. De um passado construído por repressão, luta, fuga, criação e outras formas não nomináveis. A fé de uma matriz negra apresenta condutas que movem o sujeito, sendo que não é possível caracterizar uma religião legítima, mas são vivenciadas cotidianamente aquelas que são aceitáveis. 

Afinal: O que não dá mais pra aceitar? 

Como se descaracterizar? 

Vamos lá, 

1,2,3: Som…

 

Indicação:

Lista de música do Spotify: Significado, música e negritude

 

Referências:

LACAN, J. (1972-1973/1982) O Seminário livro 20, Mais, ainda. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.

FANON, F. (2008) Pele negra, máscaras brancas. Salvador: Edufba.

NASCIMENTO, M.; BRANT, F. (1976). Raça. Disponível em: https://www.letras.mus.br/milton-nascimento/843341/. Acesso em: 03 nov 2020.

 

Autora: Karoline M. de Oliveira (Karô Castanha)

Psicóloga - CRP 14/06647-2

Fotografia: Rebeca Moreira

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