— Dia desses, sonhei com o espelho do tempo. Eu olhava pra mim e me olhava na volta. O curso da história marcada no meu rosto era espanto curioso sobre as contradições. A minha boca selada impedida de recontar o futuro. Não lhe podia dizer da travessia. De cá, perscutava a esperança e o assombro sem palavras. Acordei com a memória multiplicando a vida no café da manhã. Reli o poema do Quintana - o velho no espelho: Por acaso surpreendo-me no espelho: quem é esse que me olha e é tão mais velho do que eu? Talvez seja o sonho invertido, exposta a minha imagem, eu reconheça que é preciso imaginar para criar realidade. Ou será preciso sonhar? Se sonhar é um jeito de se levar para a superfície, contar o sonho é um jeito de vincular os afetos. Foi Shakespeare quem disse que “nós somos feitos da matéria dos sonhos” em sua peça: A tempestade. Sonhar então me fez tempestade do tempo em que eu não era nem criança e nem adulta. Esse ‘não lugar’ atravessa o caminho, é inerência e ao mesmo tempo pertencimento, pois embora venha de uma juventude que é desse tempo que não aconteceu ainda, porque é do inacabado, resta. Resta a falta e o sonho fazendo um pé adiante do outro. Estamos diante de nós, com tudo que nos atravessa, olhando ou não para o espelho. Quando olhei, não me perdi, mas busquei quem mora longe no tempo e do lado de dentro.
— Seu sonho abriu as janelas para o meu espelho do tempo. Nasci na selva de pedra e cresci na capital do Pantanal do Sul. Vivi na fronteira entre o asfalto e o universo rural. O meu quintal demarcava o limite de dois mundos. Por vezes, sinto que ainda estou dentro deste “não lugar”, tentando contornar o resto, fazer escrita com o inacabado. Chegar na adultez e me deparar com os cabelos brancos que começam a despontar, as primeiras marcas na pele que não são passíveis de disfarce, sentir dores em lugares do corpo que antes não sabia que existiam, me fazem sonhar que sou uma rã. Embrião, girino, metamorfose, metamorfose completa até tornar-me um adulto. Qual a diferença entre as duas metaformoses? Ser adulto significa que elas cessaram? Pensar que sou uma rã me permite reinventar o que sou agora. Essa massa cuja nomeação me é sempre difícil. Olho no espelho do teu tempo e me vejo. Acho que a imagem que vemos no espelho do tempo só é passível de ser vista porque falta palavra.
— É, minha amiga! Parece que cada corte é uma palavra que não ressoou. Foi a Ana Cristina César quem disse que “angústia é fala entupida”?! Cada morte que não morre é um não dito cheio de sentido. Não será possível prescindir do verbo sem cortar a carne e o pensamento? Fiquei pensando: se o espelho do tempo tivesse ouvidos, com que palavras serviríamos o jantar? Talvez, a mim sussurrasse: “não se afobe não que nada é pra já”. Mas então me lembraria que “a vida são esses deveres que trouxemos para casa quando se vê já são seis horas”. Por isso mesmo, não se afobe, pois o instante existe, fugidio e intangível.
— Afinal tudo desaparece, minha doce amiga. Por vezes, me sinto inteiramente vazia, “fico tempo sem fim ocupada em riscar as palavras e desenhos. Engrosso as linhas, suprimo as curvas, até que deixo no papel alguns borrões compridos, umas tarjas muito pretas”. Sua tempestade invadiu minha casa hoje, me embananei com as palavras do teu último bilhete. Dizem que tem nome quando o peito aperta e a perna balanga: angústia. Mas logo dei ritmo ao sentimento, virou SINTO-MA. Não saiu música feita, com as palavras formando orações, mas fiz barulho com a boca para ver se desentupia a garganta. Será que barulho pode ser uma oração também? Me olhei no espelho de novo e já me vi outra. Acho que espelho é esboço de uma nova teoria da alma humana. Uma coisa é certa, não quero uma “vida de sururu”, monótona, “agarrada à banca das novas horas ao meio-dia e das duas às cinco, é estúpida”. E isso aprendi naquele “não-lugar”, onde a palavra é inventada, dorme de barriga pra baixo. Gosto de pensar que vou ficar mais um pouquinho que é pra ver se acontece alguma coisa nessa parte do caminho, como na cantoria que já ouvimos juntas um par de vezes. Que palavras serviríamos no jantar? Talvez, a mim sussurasse: “ah, o tempo faz, tempo desfaz e vai além sempre. A vida vem lá de longe, é como se fosse um rio, para rio pequeno, canoa, pros grandes rios, navios”. Para terminar, digo que te reconheço em cada linha que o tempo desenha em seu rosto, fazendo prosa. Em cada dor que desponta no teu corpo, fazendo cantoria. E no olhar, que vez ou outra esbarra no meu. Faz poesia.
Rebeca Moreira (14/07138-1) & Lígia Burton Ferreira (CRP 14/07526-3)
Fotografia: Rebeca Moreira
REFERÊNCIAS:
A tempestade - William shakespeare
O velho no espelho - Mário Quintana
Ana Cristina Cesar
Futuros amantes - Chico Buarque
O tempo - Mário Quintana
Angústia - Graciliano Ramos
Vida de sururu - Graciliano Ramos
No rastro da lua cheia - Almir Sater