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Travessias Cotidianas

As melodias da voz e do cavaquinho de Ivone Lara e os pincéis de Nise da Silveira: uma composição de cores

As melodias da voz e do cavaquinho de Ivone Lara e os pincéis de Nise da Silveira: uma composição de cores

“Só não fui aquilo que não quis ser.” Trecho de Dona Ivone Lara para Burns (2006, p. 40) 

Decidi que um dia, quando eu voltar a trabalhar em um Centro de Atenção Psicossocial (CAPS), vou encher o saco da equipe até que a sala onde ocorrem as oficinas de música passe a se chamar Dona Ivone Lara.  Sabe, eu já circulei por alguns espaços de saúde mental ao logo dos meus quase 10 anos de vida profissional, já vi um monte de homenagem para Nise da Silveira (ainda bem!), mas nunca vi para Ivone. Quero escrever aqui o que gostaria de ter sabido há um tempo. 

Ivone Lara nasceu em 13 de abril de 1921, mulher negra, cresceu no subúrbio do Rio de Janeiro, era filha de mãe costureira e cantora, e de pai violonista, ficou órfã muito jovem, aos 11 anos de idade. É um ícone da música brasileira, autora de sambas célebres já eternizados na história de nosso país.  Foi enfermeira e assistente social, especialista em terapia ocupacional e trabalhou em hospitais psiquiátricos de 1947 a 1977. Enquanto profissional de saúde mental, era conhecida por percorrer quilômetros realizando busca ativa dos familiares dos pacientes que por muito tempo encontravam-se abandonados nas estruturas manicomiais e foi importante figura da luta antimanicomial. Ivone percorria os pavilhões do Instituto Psiquiátrico Pedro II para ouvir as histórias das pessoas internadas, tendo como objetivo encontrar referências e laços familiares, além de compreender a potência terapêutica dos encontros.  

Ivone cadenciava o cuidado em saúde mental com a música, cantando e dançando com seus pacientes e colegas. Levava o carnaval para dentro do manicômio e assim entoava cores naquele espaço asséptico e mortífero. Trabalhou com a médica Nise da Silveira e juntas se rebelaram contra as práticas de lobotomia e eletrochoques. Mulheres fortes e profissionais dedicadas, sustentaram a radicalidade da arte na produção daquilo que é o humano. Vocês conseguem imaginar as cenas?  

“E eu tenho a minha verdade 
Fruto de tanta maldade que já conheci 
Me deixa caminhar a minha vida 
Livremente 
O que desejo é pouco 
Pois não duro eternamente 
Nada poderá me afastar do que eu sou 
Amor, é o meu ambiente 
Nada poderá me afastar do que eu sou 
Me deixa, por favor”

Agora me pergunto: por que ouvimos falar tão pouco sobre o trabalho de Ivone Lara no campo da saúde mental, mesmo com sua importantíssima atuação por mais de três décadas em diferentes serviços?  Eu acredito que seja, principalmente, pela cor da sua pele e pela marca histórica e social que essa cor carrega. Compartilho com vocês que não só o branco dos jalecos, das camisas de força e das paredes dos manicômios resistia às cores dos pincéis e das melodias da arte/loucura humana, mas também – e principalmente - o branco da pele impunha e ainda impõem a intolerância e o desejo de aniquilamento da diferença – seja pela força bruta ou pelo silenciamento narrativo. 

Percebo que a sobreposição do nome de Nise da Silveira ao de Ivone Lara denuncia o pacto narcísico da branquitude mesmo quando estamos em um campo progressista e contra hegemônico. Não se trata aqui de deslegitimar ou diminuir as contribuições de uma das mais importantes médicas psiquiátricas que o Brasil já teve, mas de se pôr a pensar sobre como podemos compor e agenciar essas histórias – a nossa história – atentos a racialização dos processos.   

[...] essa fala incoerente é resultado de falar sobre raça em um mundo que insiste que raça não importa. Essa incoerência é uma demonstração de que muitos brancos não estão preparados para se engajar, mesmo em um nível preliminar, em uma exploração de suas perspectivas raciais que poderia levar a uma mudança em sua compreensão do racismo. Esta falta de preparação resulta na manutenção do poder branco, porque a capacidade de determinar quais narrativas são autorizadas e quais são suprimidas é a base da dominação cultural (BANKS, 1996; SPIVAK, 1990).  

Cristiane Scholl do Amaral 

CRP 07/29489 

 

Referências:

Dona Ivone Lara: ícone do samba brasileiro e enfermeira pioneira na Humanização em Saúde Mental | Rede Humaniza SUS - O SUS QUE DÁ CERTO 

18 de maio, Luta Antimanicomial. – PSICANALISTAS PELA DEMOCRACIA (psicanalisedemocracia.com.br) 

SciELO - Brasil - Dona Ivone Lara e terapia ocupacional: devir-negro da história da profissão Dona Ivone Lara e terapia ocupacional: devir-negro da história da profissão 

biografia-dona ivone lara.pdf (multirio.rj.gov.br) 

música Minha Verdade, composta por Delcio Carvalho e Yvonne Lara Da Costa 

Fragilidade Branca – Robin DiAngelo (2018) 

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