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MESQUITA ERRADA

Crime contra Malcolm X será revisto após documentário da Netflix

Historiadores acreditam há muito que a polícia e os procuradores públicos erraram na investigação

Martin Luther King e Malcolm X - (dir.) - AFP

Por décadas, depois do assassinato de Malcolm X, o réu confesso do caso sustentou que os dois outros homens condenados como seus cúmplices nada tinham a ver com o homicídio.

Historiadores acreditam há muito que a polícia e os procuradores públicos erraram na investigação.

Teorias de conspiração sobre desvios de conduta policial e provas que teriam sido ocultadas circulam há muito tempo. E alguns críticos acreditam que a maioria dos homicidas que dispararam suas armas contra o líder dos direitos civis conseguiu escapar, o que resultou na condenação indevida de dois integrantes da organização Nação do Islã.

Agora, depois que uma série documental na Netflix revisou extensamente as provas que apontam para a inocência dos dois condenados, o infame homicídio pode voltar a ser investigado.

A Procuradoria Pública do distrito de Manhattan informou em email ao The Washington Post no domingo que iniciaria “uma revisão preliminar” do caso a fim de decidir se deveria haver uma reinvestigação. O desdobramento havia sido noticiado anteriormente pelo The New York Times, antes do lançamento da série “Who Killed Malcolm X?” pela Netflix.

Se a procuradoria distrital reabrir o caso, a revisão pode tentar responder perguntas complicadas sobre possíveis suspeitos adicionais ou erros policiais em um dos assassinatos políticos de maior destaque na história dos Estados Unidos. Danny Frost, porta-voz da procuradoria de Manhattan, disse que Cy Vance Jr., o procurador público do distrito, havia tomado a decisão de iniciar uma revisão depois de assistir a uma apresentação feita algumas semanas atrás pelos advogados de defesa de Muhammad Abdul Aziz (antes conhecido como Norman 3X Butler), um dos homens condenados pelo homicídio de Malcolm X. O Innocence Project, que está cuidando do caso em companhia do advogado David Shanies, insiste em que Aziz, 81, passou 20 anos na penitenciária por um crime que não cometeu. Ele recebeu liberdade condicional em 1985.

O outro réu que também afirmou inocência, Khalil Islam (então conhecido como Thomas 15X Johnson), morreu em 2009. O terceiro dos condenados, o homicida confesso Talmadge Hayer (então conhecido também como Thomas Hagan e Mujahid Abdul Halim) sustentou desde seu julgamento em 1966 que Aziz e Islam eram inocentes.

“Estamos gratos ao procurador distrital Vance por ele ter concordado rapidamente em conduzir uma revisão da condenação de Muhammad Aziz”, disse Barry Scheck, um dos fundadores do Project Innocence, em um comunicado divulgado na sexta-feira.

O documentário “Who Killed Malcom X?” acompanha o trabalho do historiador Abdul Rahman Muhammad, que também é guia turístico em Washington; ele passou anos recolhendo documentos antes confidenciais liberados pelo Serviço Federal de Investigações (FBI), entrevistando antigos membros de mesquitas da Nação do Islã em Nova Jersey e na cidade de Nova York, e rastreando quatro outros potenciais assassinos, apontados por Hayer, mas jamais investigados formalmente pelas autoridades.

“Li o bastante para acreditar que os assassinos continuam à solta”, disse Muhammad no documentário. “Jamais tive medo da verdade. Sempre quis saber qual era a história real. Afinal, é de Malcolm X que estamos falando.”

No ano anterior ao seu assassinato, Malcolm X havia abandonado a Nação do Islã e rejeitado seu líder, Elijah Muhammad, a quem ele definiu como um “forjador religioso” que promovia uma ideologia racista. Malcolm X começou seu próprio movimento, a Organização de Unidade Afro-Americana, e fundou a Muslim Mosque Inc. A Nação do Islã o via como traidor. Louis Farrakhan, que na época estava ascendendo na hierarquia da Nação do Islã, havia escrito no jornal da seita que Malcom X “merecia morrer”. E uma semana antes de seu homicídio, a casa de Malcolm X foi atacada com uma bomba incendiária.

Em 21 de fevereiro de 1965, múltiplos atiradores abriram fogo contra Malcolm X, 39, enquanto ele discursava diante de um público que incluía sua mulher e filhos, bem como numerosos informantes da polícia. Hayer foi capturado enquanto fugia do local do crime, portando um pente de munição para uma arma do calibre usado para o crime. Na perseguição policial aos demais atiradores, membros da Nação do Islã provaram ser os principais suspeitos, mas o documentário argumenta que a polícia identificou os homens errados, da mesquita errada.

O foco da atenção policial era a mesquita da Nação do Islã no Harlem, na qual Malcolm X costumava pregar até se desligar da organização.

Em poucos dias, a polícia capturou Aziz e Islam, que eram frequentadores da mesquita do Harlem e membros de um grupo com traços paramilitares chamado Fruto do Islã. O grupo era conhecido por disciplinar e espancar qualquer membro da Nação do Islã que violasse as regras da organização, mesmo as menores. “Se apanhássemos alguém fumando um cigarro na mesquita, o jogávamos escada abaixo de cabeça”, disse Islam em uma entrevista à revista New York em 2007.

Aziz afirmou no documentário que o papel deles como capangas pode ter atraído a atenção da polícia, mas não queria dizer que tivessem tido qualquer coisa a ver com o homicídio. Islam e Aziz afirmaram que estavam em casa, incapacitados, no momento do homicídio. Islam disse que sofria de artrite reumática e um médico testemunhou, no julgamento de Aziz, atestando tê-lo tratado no hospital por um ferimento na perna algumas horas antes do homicídio de Malcolm X.

Os dois homens também disseram que teria sido impossível para eles entrar no Audubon Ballroom, onde Malcolm X estava discursando. Os membros da mesquita do Harlem, que na época consideravam Malcolm X como traidor, haviam sido proibidos de comparecer, e Aziz e Islam disseram que teriam sido reconhecidos imediatamente pelos seguranças.

Tampouco havia provas físicas que os conectassem ao crime, de acordo com o Innocence Project.
“Eles sabiam que eu não era culpado”, disse Aziz no documentário. “Mesmo que eu quisesse fazê-lo, não teria como. Assim, isso significa que [a polícia] sabia o que estava fazendo ao me prender. Se não houve um delito de conduta policial. o que houve, então?”

Durante seu julgamento em 1966, Hayer confessou seu papel no assassinato mas insistiu em que a polícia havia capturado os cúmplices errados. “Eu estava lá. Sei o que aconteceu, e sei quem eram as pessoas que estavam lá”, disse Hayer no banco de testemunhas, de acordo com os arquivos do The New York Times. Ele voltaria a insistir na inocência de Islam e Aziz em uma declaração juramentada de 1978, mas dessa vez foi um passo além e identificou as quatro pessoas que afirmou serem os verdadeiros assassinos, e descreveu até as responsabilidades de cada um dos envolvidos no atentado.

Todos eles, de acordo com seu depoimento, pertenciam a uma mesquita da Nação do Islã em Newark, a cerca de 30 quilômetros da mesquita do Harlem.

Apesar disso, um juiz estadual de Nova York negou uma petição do advogado de direitos civis William Kunstler pela reabertura do caso, em 1978.

“O ponto mais importante quanto a tudo que temos aqui é que as autoridades judiciais brancas jamais, ao longo de todo esse tempo —décadas—, demonstraram interesse sério por investigar, acompanhar e resolver o caso do homicídio de Malcolm X”, disse David Garrow, historiador dos direitos civis, no documentário. “Para Abdur Rahman Muhammad, essa foi uma cruzada muito solitária.”

Muhammad terminou por localizar um dos supostos assassinos identificados por Hayer em 2010, Al Mustafa Shabazz, que continuava a viver em Newark. Nas décadas transcorridas desde o homicídio de Malcolm X, o criminoso condenado, detentor de uma longa ficha policial, havia mudado seu nome, originalmente William Bradley, e se casado com uma ativista dos direitos civis em Newark. Ele chegou até a aparecer, “por um milissegundo”, em um comercial de campanha pela reeleição de Cory Booker para a prefeitura de Newark em 2010, disse Muhammad. (Booker disse no documentário que conhecia bem o homem, mas que “não estava ciente” de que ele era um dos supostos assassinos.)

“Foi simplesmente chocante. Era a primeira vez que o mundo via o rosto do homem que tirou a vida de Malcolm X”, disse Muhammad no documentário. “Ele nem estava tentando se esconder... Acreditava que seu processo de reinvenção fosse completo, e foi audacioso a ponto de aparecer em um filme, um vídeo de campanha de um prefeito muito popular, que hoje é senador.”

Shabazz negou qualquer envolvimento no homicídio, quando o jornal New York Daily News o confrontou, em 2015. “É uma acusação”, ele disse ao jornal, então. “Eles jamais falaram comigo. Só me acusaram de algo que não fiz”. A teoria quanto ao homicídio também foi mencionada em “Malcolm X - Uma Vida de Reinvenções” (Cia. das Letras, 672 págs.,  R$ 87,90) biografia premiada escrita por Manning Marable.

De acordo com o Innocence Project, os documentos liberados pelo FBI sustentam o relato de Hayer, mas a procuradoria pública de Manhattan afirma que não estava ciente dos documentos e que não os havia visto, no momento do julgamento.

A unidade de integridade de condenações da procuradoria está revisando as provas. Um dos procuradores encarregados da revisão, Peter Casolaro, ajudou a reinvestigar o caso dos Central Park Five, no começo da década de 2000, o que resultou na libertação de cinco homens condenados erroneamente pelo estupro de uma corredora.

Fonte: Folha de S. Paulo.