EXPLORAÇÃO TRABALHISTA
Irmão de prefeito escraviza paraguaio por 20 anos e 'peita a Justiça' em MS
Crente de que sairia impune, patrão disse estar no Canadá
Um paraguaio foi resgatado morando com animais na fazenda Matão, em Porto Murtinho (MS), de propriedade do pecuarista Natanael Ribeiro Cintra, de 73 anos, irmão do prefeito Nelson Cintra (PSDB).
O Ministério Público do Trabalho (MPT) disse nesta sexta-feira (22.juul.22), que o paraguaio foi um de 9 funcionários mantidos em condições de trabalho análogos a escravidão no pantanal sul-mato-grossense. Eles foram resgatados entre os dias 11 e 22 de julho no âmbito de uma operação conjunta conduzida pelo Defensoria Pública da União (DPU), Ministério do Trabalho e Previdência e da Auditoria-fiscal do Trabalho.
As vítimas estavam em 3 propriedades rurais, nos municípios de Corumbá e Porto Murtinho, ambos na região pantaneira.
Segundo o órgão, o idoso nascido no Paraguai era mantido há 20 anos em condições análogas à de escravo na fazenda do pecuarista da família Cintra.
“Embora diversos outros trabalhadores atuassem ali sem os devidos registros em carteira e outros direitos, como FGTS e férias, o idoso estrangeiro era o único mantido pelo empregador em um alojamento extremamente precário, dividindo espaço com animais e com agrotóxicos”, explicou o MPT em coletiva à imprensa na sede do órgão, em Campo Grande (MS), nesta sexta.
Em depoimento, o trabalhador paraguaio confirmou as duas décadas de servidão e que antes da Fazenda Matão, trabalhou na Fazenda São Francisco, também do irmão Cintra. As fazendas Santa Helena em Porto Murtinho (MS) e Guaraçaí (SP) também pertencem à Natanael. O pecuarista também é diretor e administra o Boitel-Malibu, na capital, uma espécie de hotel para gado em confinamento. E ainda é proprietário da Chácara Primavera também na Capital.
Na fazenda Matão, o idoso era parte dos trabalhadores que bebiam água com resíduos sólidos, e precisavam custear a própria alimentação. Caso consumissem carne fornecida pela fazenda – cuja principal atividade é a criação de bovinos – um valor era descontado da remuneração mensal, de R$ 1,5 mil. O grupo tinha acesso à cidade mais próxima, Bonito (MS), apenas uma vez ao mês, e era conduzido na carroceria de um caminhão da fazenda em uma estrada de chão, por mais de 130 quilômetros, com visibilidade severamente prejudicada pela poeira.
“A exposição do idoso, por mais de duas décadas, a essas condições degradantes, o isolamento geográfico e a exploração irregular de sua força de trabalho, sem que tivesse acesso a diversos direitos trabalhistas, ou a oportunidade de promover sua regularização migratória de volta ao Paraguai, levaram a Auditoria-fiscal do Trabalho a caracterizar a situação como análoga a de escravidão, com o agravante do caráter discriminatório em relação aos demais trabalhadores da fazenda”, disse o MPT numa conclusão corroborada pelo procurador do Trabalho Paulo Douglas de Moraes e pelo defensor público federal Rodrigo Esteves Rezende, que participaram da operação.
Após o flagrante, o MPT e a DPU convocaram Natanael e seus representantes jurídicos para uma audiência administrativa, realizada na sede da Promotoria de Justiça de Bonito. Para a surpresa da Justiça Trabalhista, os advogados do fazendeiro recusaram o acordo proposto pelas instituições, prevendo o pagamento das verbas rescisórias ao trabalhador, calculadas pela Auditoria-fiscal do Trabalho. “Valores relacionados à FGTS, férias e 13º, que não foram pagos pelo empregador durante todo o vínculo – ou seja, que ele recebesse pouco mais de R$ 84 mil pelos serviços prestados na propriedade ao longo de duas décadas, além de uma indenização, no valor de R$ 75 mil, equivalente a 50 vezes o salário do trabalhador, a título de danos morais individuais, e a fim de reparar a grave lesão à sua dignidade”, explicou o órgão.
O irmão do prefeito tucano Nelson Cintra tem exposta em frente a sua propriedade uma placa indicando pegou R$ 915 mil do Fundo Constitucional do Centro-Oeste (FCO) para comprar bovinos. “No entendimento do MPT, tal circunstância agrava ainda mais a situação, uma vez que o acesso a recursos públicos é condicionado ao cumprimento da função social da propriedade”, comentou o órgão trabalhista.
“Todos nós, membros da força-tarefa, lamentamos o descaso deste patrão, que na oportunidade de firmar um acordo, encontrava-se no Canadá. Diante da possibilidade de reparação da situação de abandono e indigência a qual conscientemente submeteu o trabalhador por todo este tempo, crendo na sua impunidade, manteve-se inerte”, avaliou Paulo Douglas de Moraes.
Diante da recusa em admitir uma solução pela via extrajudicial, além do trabalhador ser imediatamente afastado da propriedade, o MPT e a DPU irão pleitear, em juízo, a integral reparação às lesões materiais e morais suportadas pelo trabalhador por mais de 20 anos.
Após a coletiva, o MPT explicou ao MS Notícias que a advogada de Natanael procurou o MPT recuando da recusa do acordo. "Eles estão na sala e a expectativa é que firmem o TAC", disse a assessoria ao telefone na tarde desta sexta-feira.
ACORDO COM OS EMPREGADORES GARANTE REPARAÇÃO ÀS VÍTIMAS
Já nas outras duas propriedades rurais, ambas localizadas em Corumbá, a conduta dos empregadores foi de pronto diferente. Os proprietários das fazendas se comprometeram, ao assinarem Termo de Ajuste de Conduta (TAC), a pagar cerca de R$ 22,5 mil para cada um dos oito trabalhadores flagrados em condições degradantes, totalizando, entre verbas rescisórias e danos morais individuais, mais de R$ 180 mil, além de mais R$ 80 mil a título de dano moral coletivo a ser revertido na aquisição de bens para o aparelhamento da Polícia Militar Ambiental (PMA) de Mato Grosso do Sul.
Os Termos de Ajuste de Conduta, para além da reparação financeira, visam corrigir as irregularidades identificadas pela Auditoria-fiscal do Trabalho no decorrer da operação de resgate e, sobretudo, à proteção de futuros trabalhadores contratados para a execução dos serviços rurais.
O MPT não divulgou o nome das outras duas fazendas.
TRABALHO ESCRAVO CONTEMPORÂNEO
Não é apenas a privação de liberdade que torna o trabalho análogo ao de escravo, mas sim, a ausência de dignidade. Estes nove trabalhadores foram flagrados sob parte dos quatro elementos que caracterizam o trabalho análogo ao de escravo, conforme o artigo 149 do Código Penal: condições degradantes de trabalho, incompatíveis com a dignidade humana, caracterizadas pela violação de direitos fundamentais e que coloquem em risco a saúde e a vida do trabalhador; jornada exaustiva (em que o trabalhador é submetido a esforço excessivo ou sobrecarga de trabalho que acarreta a danos à sua saúde ou risco de vida); trabalho forçado (manter a pessoa no serviço através de fraudes, isolamento geográfico, ameaças e violências físicas e psicológicas) e servidão por dívida (fazer o trabalhador contrair ilegalmente um débito e prendê-lo a ele). Os elementos podem vir juntos ou isoladamente.
Uma das vítimas resgatadas pela força-tarefa durante a operação, um homem de 27 anos, atuava como cozinheiro há quatro semanas em uma das fazendas. Contratado em Corumbá por um intermediador, ouviu dele que a remuneração seria de R$ 50 por dia, porém, ele ainda não havia recebido nenhum valor. Por isso, foi impelido a pedir um vale, de R$ 400, com intuito de comprar mantimentos básicos para a sua permanência na propriedade, como sabonete, papel higiênico e sabão.
Ele e mais dois colegas dormiam em um barraco de lona, sem acesso à energia elétrica, e usavam o mato para fazer as necessidades fisiológicas e tomar banho. A água para consumo vinha de um poço artesiano da fazenda, ficava armazenada em um tambor de diesel e estava completamente turva no momento do flagrante. O trabalhador relatou, em depoimento, que inclusive já havia passado mal por beber a água. Ele mesmo manipulou “plantas da fazenda” na tentativa de se recuperar.
A jornada começava antes mesmo do raiar do dia, às 4 horas da manhã, e só terminava por volta das 4 da tarde. No caso dele, sequer havia direito à folga: o serviço de cozinheiro era realizado de domingo a domingo.
Um colega de trabalho, de 46 anos, fora contratado diretamente pelo proprietário da fazenda, há cerca de três meses, para construir cercas, mangueiro para bezerros e salgadeira para o gado. Ele retirava e fazia os postes a partir de madeira plantada na própria fazenda, utilizando um motosserra sem nunca ter passado por qualquer tipo de treinamento para operar a ferramenta, ou receber Equipamento de Proteção Individual (EPI) para se resguardar de eventuais acidentes durante a execução do serviço.
Na outra propriedade rural fiscalizada, era uma mulher quem atuava como cozinheira, sem direito à descanso semanal, e os demais trabalhadores também faziam a construção de cercas no momento do flagrante. Um deles afirmou ter consciência de que as condições de trabalho eram inadequadas, mas disse não ter outra opção, a não ser submeter a elas, se quisesse ter dinheiro para sustentar a família.
"A realidade do trabalho escravo contemporâneo, ainda arraigada no Brasil, e mais presente em determinadas regiões, reforça a necessidade da atuação multidisciplinar e pluri-institucional do Estado, como ocorrido nesta exitosa operação de combate a uma prática nefasta de exploração do labor de vulneráveis, e tão nociva aos valores do trabalho e à dignidade da pessoa humana”, disse o defensor público Rodrigo Rezende.
TRABALHO ESCRAVO CONTEMPORÂNEO EM MATO GROSSO DO SUL
O número de vítimas do trabalho análogo ao de escravo em Mato Grosso do Sul no ano de 2022 já é quase equivalente ao registrado ao longo de 2021. Até o dia 21 de julho, 72 trabalhadores foram resgatados, conforme relatório da Auditoria-fiscal do Trabalho em Mato Grosso do Sul, órgão vinculado ao Ministério do Trabalho e Previdência, do governo federal. Durante todo o ano passado, 81 trabalhadores foram flagrados laborando em condições degradantes.
Neste ano, até 21 de julho, ainda conforme o relatório da Auditoria-fiscal do Trabalho, foram efetuadas oito ações fiscais, em propriedades rurais localizadas nos municípios de Porto Murtinho, Bela Vista, Ponta Porã, Corumbá e Naviraí. No momento destes flagrantes, os trabalhadores atuavam na aplicação de herbicidas em lavouras, construção de cercas, carregamento de eucalipto, roçada de pasto, plantio de cana-de-açúcar e criação de bovinos.
Em 2021, foram realizadas 11 ações fiscais com resgate de trabalhadores, em Campo Grande, Sidrolândia, Porto Murtinho, Anastácio, Antônio João, Ponta Porã e Corumbá. As vítimas atuavam no cultivo de soja, extração de madeira, criação de bovinos, construção de cercas para confinamento de gado e em uma obra da construção civil, na zona urbana.
DENUNCIE
Todo cidadão que presenciar pessoas atuando de formas que caracterizam o trabalho análogo ao de escravo (em condições degradantes de trabalho; sob jornadas exaustivas; trabalho forçado ou por servidão por dívida) pode denunciar ao MPT.
Basta acessar o site: www.prt24.mpt.mp.br/servicos/denuncias
Ou pelo MPT Pardal, aplicativo do MPT voltado para denúncias.
Referente ao IC 000404.2022.24.000-0
*Com assessoria do MPT-MS.