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INTERIOR DO RJ

Maricá: a cidade que incomoda o bolsonarismo

"É um absurdo o que fazem em Maricá. Até ônibus de graça tem lá", esbravejou direitista

Opção. Maior beneficiária dos royalties do pré-sal, a cidade oferece transporte de graça e melhora a infraestrutura urbana - Imagem: Pablo Costa | Carta Capital

Em jantar que reuniu em um restaurante do Rio de Janeiro militares, policiais, motoqueiros, evangélicos e terraplanistas para celebrar a candidatura do general da reserva e ex-ministro da Saúde Eduardo Pazuello a deputado federal, um assunto mobilizou a plateia tanto quanto (ou mais) do que o anúncio da campanha: Maricá, cidade do litoral fluminense governada há 14 anos pelo PT.

Mal a ser extirpado, segundo os convivas, o município de 150 mil habitantes foi descrito como uma “ameaça”, “polo de dominação comunista”, projeto do Foro de São Paulo e semente da Ursal, suposta União das Repúblicas Socialistas da América Latina, um chiste da socióloga Maria Lúcia Barbosa levado a sério pelo folclórico Cabo Daciolo, que popularizou a sigla nas eleições presidenciais de 2018. Daciolo, ficou evidente no jantar, não é o único preocupado com a infiltração socialista. Na noite que marcou o início de sua aventura eleitoral, Pazuello discursou: “Senhores, eles estão trabalhando nisso há mais de 20 anos para implantar o bolivarianismo em toda a América do Sul”, delirou o direitista. Alguém gritou de uma das mesas: “É um absurdo o que fazem em Maricá. Até ônibus de graça tem lá”.

E pior, além de gratuitos, são todos pintados de vermelho. A tarifa zero no transporte público, exibida em letras garrafais nos ônibus, é um dos marcos da cidade que se tornou famosa no mundo por seus experimentos sociais.

Outros, um pouco menos visíveis para quem visita o município, mas de grande impacto na população local, são o programa de renda básica, o banco comunitário e a moeda municipal, a mumbuca, equiparada ao valor do real. Após duas gestões de Washington Quaquá, hoje vicepresidente nacional do PT, e passada quase metade do segundo mandato do sucessor, Fabiano Horta, Maricá aos poucos tem deixado de ser uma cidade-dormitório, vazia e sem perspectiva. Nos últimos dois anos, a localidade figurou entre aquelas que proporcionalmente mais geraram emprego no País, segundo dados oficiais. É também a maior beneficiária dos royalties do pré-sal: foram 2,4 bilhões de reais em 2021. O incremento do caixa, via royalties, permitiu à prefeitura entrar em uma nova fase, com ênfase na produção científica inovadora e na estruturação de um polo industrial em torno do futuro Terminal Portuário de Ponta Negra. “Quando a prefeitura fez a opção pela construção de uma política de renda básica com uma moeda local, conseguiu, além de combater a miséria, a pobreza e a desigualdade, fazer com que do primeiro ao último centavo destinado a esse programa circulasse na cidade. A partir daí a economia de Maricá passou a responder de maneira muito clara. O setor de comércio e serviço começou a perceber que havia uma demanda adicional a surgir”, diz Igor Sardinha, secretário de Desenvolvimento Econômico.

“Depois de garantir programas de renda básica, a prefeitura aposta agora na ciência e tecnologia”.

A pandemia da Covid-19 mereceu resposta rápida, por meio do Programa de Amparo ao Trabalhador. “A prefeitura garantiu a mais de 20 mil trabalhadores informais um salário-mínimo pago em mumbucas. Ao longo do tempo, com a redução do contágio, esse valor foi diminuído. Hoje, o programa ainda está em vigor e paga 600 mumbucas”, explica Sardinha.

Prorrogado até o fim deste ano, o PAT beneficiou 21 mil autônomos e profissionais liberais. A administração criou ainda o Programa de Amparo ao Emprego, iniciativa em parceria com os empresários locais para evitar demissões durante a pandemia. “Um cadastramento subsidiou o pagamento de um salário-mínimo mensal por trabalhador. Se a empresa pagasse mais que o mínimo a determinado funcionário, caberia a ela complementar o salário, e a contrapartida é que não poderia demitir até seis meses depois do encerramento do pagamento pela prefeitura. Com isso, foram preservados mais de 300 empregos formais”.

Outra medida foi Depois de garantir programas de renda básica, a prefeitura aposta agora na ciência e tecnologia a criação do programa de microcrédito Fomenta Maricá, que desde o início do surto do coronavírus destinou 17 milhões de reais aos microempreendedores individuais (MEIs). Nesse período, Maricá teve mais empresas abertas do que fechadas, segundo a Junta Comercial do Rio de Janeiro.

Para a população mais pobre, a bandeira mais visível da gestão é, porém, o Banco Mumbuca, primeira instituição financeira comunitária do Brasil. Criado por Quaquá em 2013, o banco iniciou as atividades com o pagamento de 70 mumbucas, moeda que só pode ser usada no comércio local, a 3 mil famílias registradas no Cadastro Único do governo federal e com limite de renda de até um salário-mínimo. Em 2015, a partir do recebimento dos royalties, foi possível aumentar o número de beneficiários para 14 mil e o valor repassado. “Passamos a pagar 130 mumbucas para o responsável pelo núcleo familiar, para as mulheres gestantes naquela família, até o filho completar 1 ano, e para os jovens de 15 a 29 anos”, conta Manuela Mello, presidente do banco.

Cultura. O Teatro Henfil é uma das apostas para segurar os moradores na antiga “cidade-dormitório” – Imagem: Pablo Costa | Carta Capital

Em 2017, a adoção do aplicativo da Rede Brasileira de Bancos Comunitários fez com que a taxação sobre o uso da mumbuca também se revertesse em benefícios da cidade. “Passamos a cobrar 2% e o comerciante credenciado, que antes recebia 30 ou 45 dias depois, passou a receber na hora. Toda a taxação vai para um fundo de uma associação ligada ao banco e é distribuída para a população em forma de crédito, projeto e patrocínio”, explica Mello.

O banco também concede créditos de até 2 mil mumbucas a juro zero, independentemente da renda do cliente, e liberou o equivalente a 1,6 milhão de reais em créditos entre 2018 e 2021.

O objetivo agora é expandir o uso da moeda. “A universalização não está muito distante, pois temos 68 mil clientes.”

Outro salto qualitativo que a de “socialismo transitório” pretende dar passa pela criação, em 2019, do Instituto de Ciência, Tecnologia e Inovação de Maricá. Convidado para o comando do instituto em 2020, o ex-ministro Celso Pansera afirma que seu primeiro objetivo foi criar uma cultura da ciência na cidade: “Abrimos muitas vagas de mestrado e doutorado. Temos contratos assinados com a UFRJ na área de Engenharia de Produção, estamos fechando com a Universidade Rural, o Instituto Nacional de Tecnologia e a Unirio um conjunto de ações de pósgraduação. Também lançamos nosso próprio programa de iniciação científica, com 48 alunos bolsistas e bolsa de 600 reais”. Neste ano, Maricá vai inaugurar a primeira de quatro Casas da Ciência. “É um local com planetário, sala de aula imersiva e um espaço maker com impressoras 3D e uma série de ações para a juventude aprender a criar games, entre outros trabalhos com computador. A ideia é atender as escolas da rede municipal de ensino”, diz Pansera.

Segundo o ex-ministro, o objetivo é desenvolver em diversas frentes o conceito de empreendedorismo, com inovação social em uma relação de produção horizontalizada e sem a participação de atravessadores. O trabalho será realizado por incubadoras, como a que cuidará do programa de produção de alimentos orgânicos Bem Viver Alimentar. “Vamos melhorar a qualidade das sementes e das plantas e ampliar a produtividade de feijão guando, tomate, banana, aipim e abóbora.”

Maricá protegeu os vulneráveis durante a pandemia e resolveu de forma criativa o dilema entre saúde e economia prefeitura aposta ainda na criação de um polo de produção de jaca na região. “Existe uma demanda mundial enorme pela jaca, por conta da produção de alimentos veganos. Vamos começar a cadastrar produtores em agosto, para comprar a produção em fevereiro do ano que vem, em uma parceria com a empresa Açougue Vegano”, diz o ex-ministro.

Outra incubadora cuida da economia solidária, que organiza as famílias dependentes de complementação de renda e donas de algum tipo de negócio. “Tem o botequim, o salão de beleza, a vendedora de salgadinhos, a explicadora. Queremos organizar e desenvolver uma série de economias locais a partir dessa incubadora. E abrir microcrédito para que funcionem também de uma forma mais institucionalizada”, afirma Pansera. “O potencial da região tem de ser organizado e inovado para que gere emprego e fixe os moradores.”

Esse é um dos projetos ambicionados pela gestão petista que irá permitir o fim da poluição do transporte público na cidade. Foto: Reprodução 

No quesito inovação, a menina dos olhos da gestão é o ônibus elétrico criado em parceria com a UFRJ. São três modelos em desenvolvimento – dois híbridos movidos a eletricidade e hidrogênio, ou a eletricidade e etanol, e um modelo puramente elétrico – com estratégia de industrialização e montagem em Maricá. “Aproveitamos os recursos que hoje chegam à cidade por conta de uma matriz energética poluente para investir em pesquisa e inovação e no desenvolvimento de uma indústria não poluente no pós-royalties. Nossa empresa pública de transportes está comprometida a comprar esses ônibus, que, quando estiverem plenamente desenvolvidos, serão inseridos em nossa frota”, garante Sardinha. Maricá, adianta o secretário, pretende disputar mercados e vender seus ônibus elétricos no Brasil e no exterior.

O economista e professor da UFRJ Mauro Osório, especialista em Planejamento Urbano e Regional, afirma que o mérito de Maricá foi conciliar a pandemia com a questão econômica: “Com os royalties, criou-se uma série de políticas muito bem concatenadas, que permitiram à cidade fazer aquilo que o governo federal, que tem muito mais recursos, deveria ter feito, ou seja, dar condições de ficar em casa a quem não tivesse meios para tanto. Maricá é um dos municípios que fizeram o inverso do governo federal, e fez o correto”.

Além disso, a prefeitura apostou na vacinação em massa e, segundo levantamento da UFRJ, tinha 40% da população imunizada em julho do ano passado, reduzindo à metade a incidência geral do Coronavírus, em um dos melhores desempenhos do Brasil.

Horta, o prefeito: “Não há evolução solitária de nenhum ente numa sociedade que precisa combater a desigualdade”.

Para Osório, o maior desafio é trabalhar a transição energética: “Mantida a atual regra de royalties, Maricá terá a perspectiva de algumas décadas para construir uma estrutura produtiva que permita à cidade ir progressivamente dependendo menos dos royalties para, no futuro, não ter uma queda brusca de receita por habitante”. O chamado “pós-royalties” é planejado pela prefeitura. “Temos uma série de políticas públicas que dialogam com o futuro. Vamos encerrar a atual gestão deixando bases fortes para que Maricá tenha uma economia que caminhe de forma perene e autônoma, independentemente da questão dos royalties”, estima Sardinha.

A cidade quer investir em um processo de industrialização a partir do gás natural da Bacia de Santos. “Maricá é o ponto terrestre com menor distância para os mega campos do pré-sal e isso será fundamental a partir da entrada em operação da Rota 3 de escoamento de gás da Petrobras para o Polo Petroquímico de Itaboraí. Após dez anos de uma longa batalha judicial, o porto tem hoje sua licença de instalação emitida pelo Instituto Estadual do Ambiente e está apto a iniciar suas obras”, diz o secretário. A prefeitura vai montar um parque industrial em uma área a 8 quilômetros do futuro porto. Uma legislação com incentivos fiscais a fábricas, a Desenvolve Maricá, foi aprovada pelos vereadores. A recente atualização da Lei do ICMS reduziu a alíquota de 20% para 2%. O futuro polo da cidade é um dos quatro eixos do programa Industrializa Rio, do governo estadual. “Tendo o porto, o gás e um parque industrial, entendemos que há um potencial fantástico de desenvolver a cidade”, vislumbra Sardinha.

Maricá, diz Horta, o prefeito, continuará a apostar em um modelo de desenvolvimento baseado na garantia de direitos: “As políticas de renda básica que se vinculam à moeda social, o transporte tarifa zero e o passaporte que garante a entrada dos jovens na universidade serão objetivamente pensados no longo prazo e do ponto de vista da natureza orçamentária e fiscal. A cidade construiu, a partir dos royalties do petróleo, uma garantia no longo prazo de que essas políticas possam estar estabelecidas”. A diferença das políticas construídas em Maricá com relação ao governo Bolsonaro, afirma, passa pela inclusão dos mais pobres no orçamento e pela certeza dos direitos como valores de uma sociedade que busca combater a desigualdade: “Queremos que o orçamento público seja um fomentador, um gerador desses elementos”. Segundo Horta, Maricá “aposta no sentido inverso” do que é feito hoje pelo governo federal: “Quando ampliamos a possibilidade de os moradores terem acesso a renda e a políticas que facilitem e melhorem suas vidas é que construímos uma sociedade que vai conjuntamente evoluindo. Não há evolução solitária de nenhum ente numa sociedade que precisa combater a desigualdade”.

Pansera aposta na futura replicação do modelo de Maricá pelo Brasil afora e brinca com as preocupações da tropa de Pazuello: “A população vê agora a calçada benfeita, a rua asfaltada, a iluminação melhor e o ônibus de graça. Daqui a um tempo vai perceber esse conjunto de novas ações. Maricá teve três gestões que melhoraram os aspectos físicos da infraestrutura da cidade e agora intensifica o planejamento da parte da inteligência, da ciência, de olho nas mudanças do futuro. A ameaça comunista não somente tem dado certo, como está também em desenvolvimento”.

• PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1216 DE CARTACAPITAL, EM 13 DE JULHO DE 2022.