ARTE | CULTURA
Ligia não desiste da Arte de MS e levanta 'Grupo Casa' com força feminina
Amigas, professoras se unem em curso de teatro comandado por mulheres; história de artista da Capital mostra o preconceito derrotado pelo o amor
Psicanalista por formação e atriz por paixão, Ligia Prieto, de 34 anos, iniciou a carreira no teatro aos 13 anos em Mato Grosso do Sul (MS) e sempre teve a cena como profissão, mesmo sem apoio da família. Há 21 anos ela vive de arte e segue trabalhando em todo o Brasil. "Nós pensamos em ir embora para São Paulo, lá, inclusive somos mais reconhecidas do que aqui, mas deixar tudo, esse coletivo lindo de mulheres, não. Essa foi a hora de reunirmos todas as nossas forças para mudar algo aqui, não podemos desistir da arte aqui", introduziu Ligia.
Ligia foi entrevistada durante uma tarde numa cafeteria na Capital sul-mato-grossense. Ao seu lado estava Kelly Figueiredo, a sua atual colega de trabalho. Elas estão juntas à frente do Grupo Casa, que retoma suas atividades em novo endereço, na Avenida Gabriel Del Pino, 1057, no Bairro Vilas Boas em Campo Grande.
Na ocasião, Ligia e Kelly falariam sobre o lançamento de um novo módulo de cursos de teatro (que citaremos abaixo), tema central da entrevista. Antes, porém, a reportagem quis conhecer mais sobre o Grupo e mergulhar um pouco mais na relação de Ligia com a arte.
Filha de Nildes Maria das Graças Tristão Prieto, Ligia viu na mãe a primeira manifestação artística, porém, seria também na genitora que Ligia encontraria uma formação equivocada de que arte não poderia se tornar uma profissão. “Ela sempre escrevia e falava poesia. Quando ela era criança, uma tia minha que era a irmã mais velha dela, que cantava, era cantora de rádio. A tia cantava num botequim que tinha perto da casa que elas moravam no sítio, lá em Campo Mourão, no Paraná... aí quando ela cantava, ela ganhava uma cesta básica para levar para casa e minha mãe, pequenininha, falava uma poesia no mesmo botequim e ela ganhava um saco de açúcar em troca da declamação. Aí ela ia para casa da minha avó, mãe da minha mãe e a vó fazia puxa-puxa (um doce de açúcar e água). Então, no dia que tinha poesia, tinha doce e toda a família comia. Isso virou um lugar subjetivo e eterno na cabeça da minha mãe, que a poesia era um luxo e não poderia ser uma profissão”, justificou.
Ao ganhar idade adulta, apesar de amar a poesia, Nildes optou pela profissão de dentista e constituiu família. Entre os filhos nasceu Ligia, uma artista. Naturalmente, o leitor deve imaginar que Nildes, que não conseguiu viver de arte, talvez pudesse ajudar a filha a seguir por tal caminho, mas Ligia disse que era desistimulada a seguir carreira na arte. “Ela passou a vida inteira entendendo e falando para mim que isso não era uma profissão, que a arte eu não podia escolher. Ela veio de uma família muito pobre, onde era impossível pensar, sonhar em ser artista. Aí ela foi dentista a vida toda, porque era impossível ela ser só poeta, mas ela sempre escreveu, desde pequenininha”, explicou.
Apesar disso, a diretora do Casa disse que ingressou no teatro ainda adolescente, contra o que sugeria a família. “Por conta da minha família eu não deveria fazer, inclusive (risos), sempre foram contra! Eu comecei a fazer teatro porque minha irmã começou a fazer teatro com o Arte Boa Nova e daí um dia faltou uma atriz e eu acabei entrando”, lembrou.
Desde que pisou a primeira vez no palco, Ligia diz que sempre sentiu vontade de ir mais longe e aprender mais. Durante suas buscas por aprendizado, ela integrou a formação de um dos grupos mais tradicionais de Campo Grande. “Na época era ‘Corre Cotia’, que era o primeiro nome que tinham dado, depois veio o nome 'Fulano Di Tal', participei meio que daquele início ali. Eu fiquei um período ali. Depois decidi que precisava, de novo, buscar algo a mais”.
Sem apoio da família para ingressar num curso profissional de arte, Ligia optou pela área da psicologia. “Aí eu me formei em psicologia, fui embora para Minas (MG), depois fui para São Paulo, fiz especializações tudo na área de psicologia, mas em todo esse tempo eu não parei de fazer teatro, sempre foi paralelo. Depois fui para o Rio de Janeiro, onde fiz cursos maiores, fiz seis meses de Nelson Rodrigues, um semestre de Commedia dell'arte, isso em 2011, 2012”, detalhou.
Em todo esse tempo a mãe não entendia o que Ligia buscava. A diretora se estabeleceu no Rio de Janeiro, onde se tornou Gerente de Cultura, na Secretaria Municipal de Pessoa com Deficiência e passou a aliar sua formação acadêmica com a arte. “Eu dava aula para pessoas com deficiência nas unidades da Rocinha e da Central do Brasil, mas todas as unidades da Secretaria seguiam o meu projeto de aula. Era um projeto de entender antes essa pessoa como um sujeito no mundo, sabe? Ativo, como gente... para depois essa pessoa escolher se o teatro entra num lugar profissional, ou em qualquer outro local. Eu entendia o teatro como um lugar de formação de gente e não só como a formação de ator”.
No período em que esteve na Secretaria, Ligia notou uma reaproximação da mãe, que de algum modo passou a notar em si a vontade de voltar a fazer poesia. No carnaval de 2013 Nildes foi ao Rio de Janeiro ver a filha, local onde Ligia trabalhava com teatro e vivia disso. “Ela falou que ela tinha entendido, que ser artista era uma profissão, que arte era uma profissão e que ela ia voltar para casa e ia abrir a Casa da Poesia. Isso era fevereiro de 2013 que ela foi lá passar uns dias comigo. Aí ela voltou e abriu a casa da poesia Dr. Alda Garcia, ela abriu em maio daquele ano”.
Nildes tinha tomado a decisão de voltar ao que lhe fazia feliz, a arte. No entanto, segundo Ligia, aquela alegria viria a ser interrompida um mês mais tarde. “Em junho ela foi diagnosticada com Leucemia, foi tudo muito rápido, eu estava no Rio na época. Ela faleceu em decorrência da doença em setembro de 2013... Eu sempre falo assim, às vezes a gente realiza o que a gente mais quer e a vida acaba”, disse, comovida.
Quando a mãe faleceu, a família insistiu para que Ligia voltasse a morar em Campo Grande. “Eles insistiram muito para eu voltar, porque o pai ia ficar sozinho e tudo estava tão difícil. Aí eu falei, bom, já que eu dou aula aqui no Rio de Janeiro eu preciso dar aula aí! Assim que voltei, começou o Grupo Casa”, datou.
NASCIMENTO DO CASA
O começo do Grupo Casa marca também a união entre Ligia e seu ex-companheiro, Fernando, que na época era seu namorado, estuava arte e decidiu seguir Ligia até MS. “Eu tinha conhecido ele pouco tempo antes da minha mãe falecer. Aí quando disse que iria para MS ele quis ir junto, mas ele vindo ou não, já era meu planejamento fazer o Casa. Aí eu vim para cá e começou o Casa na sala da casa da minha mãe”.
Desde então, Ligia vem trabalhando com produção de espetáculos, formação de atores, cursos diversos e intensos. De acordo com ela, ocorreram períodos em que tiveram 12 pessoas morando na mesma casa. “Foram 6 anos de muito trabalho. No Casa eu aprendi como fazer e como não fazer muitas coisas... foram anos muito intensos de muito trabalho e nem sempre muito saudáveis”.
A ideia do projeto, segundo Ligia, não era que os alunos morassem junto com os professores. “Isso foi acontecendo, porque a gente precisava de parceiros de trabalho. A gente acabou tendo fixo 100 alunos em formação constante, parte deles moravam com a gente. E aí aos poucos a gente foi tentando resgatar uma independência... era muita coisa, em 2018 eu chamei do ano do desmame, em que eu parei e analisei para onde estávamos indo com tudo”.
Nos 6 anos de atividades, Ligia disse que passaram mais de mil alunos pelo Grupo Casa. “Todo mundo que ingressou se envolveu e muitos tomaram carreira profissional, foram estudar outras coisas com outros profissionais, mas saíram de lá acesos”.
O sétimo ano de atividades do Grupo, porém, não seguiu como os seis anteriores. De acordo com Ligia, em 2020, pouco antes da pandemia, seu relacionamento com Fernando terminaria e com isso ocorreria também uma grande mudança no Grupo Casa. “A gente fez a separação em março de 2020, uns dez dias antes de apitar a pandemia, com isso veio as mudanças, as maiores”.
Ao fim da parceria com Fernando viria também muitas perdas, mas a escolha seria primordial. “A Kelly estava há seis anos na companhia com a gente, mas existia esse êxito, as pessoas iam indo embora. A gente faz essa mudança e, com isso, renuncia a todo o repertório do Casa, eu e Kelly. Antes a gente dirigia juntos e misturava essa vida profissional com a pessoal, diante disso, a gente escolhe a gente, a gente escolhe nosso caminho de mulher, de artista, de fazer escolhas em que a gente acreditava o que é arte. E caminhar com gente que acredita e faz o melhor para a gente crescer... foi uma escolha por nós”, apontou Ligia.
Com a separação, Ligia e Kelly conseguiram autonomia à frente dos projetos e passaram a desenvolver arte no lugar semelhante ao trabalho que Ligia fazia no Rio de Janeiro. “Eu fiz essa escolha porque eu precisava me escolher... E hoje a gente consegue caminhar numa estrutura que a gente acredita que é mais ética, mais carinhosa, mais afetiva. Um lugar que a gente acredita que sempre foi a arte, um lugar que sempre meu trabalho foi estabelecido. Num lugar que faz gente, gente melhor... se conseguir formar alguém que consiga tratar o outro melhor já será ótimo”, completou.
Ao ser questionada por um colega de trabalho após um curso, a diretora do Casa sintetizou. “Eu sou mais a Ligia do que nunca. É isso que o teatro faz, coloca a gente de frente com a gente mesmo”.
O CURSO
Ligia explicou que o curso teve início em agosto e as inscrições seguem abertas para o VI Processo em Cena: curso de teatro que terá 100 horas de trabalho criativo ao longo de 5 meses.
“Estão abertas vagas para crianças, que chamamos de “Grupo Casinha”, com turma presencial todos os sábados das 14h às 16h com a professora artista Kelly Figueiredo. Além disso, o Grupo está com inscrições abertas para a oficina de circo, com a professora Nathália Maluf, com turmas nas segundas e quartas-feiras. A gente não parou, ficamos on-line. Estamos com 4 oficinas: temos também curso para bebês, com a professora Elaine Guarani. O curso para adultos é terça e quinta-feira, são 4h semanais, comigo. Teremos convidados que vão dar aulas complementares. Eu trago essas pessoas para incrementar”, esmiuçou.
De acordo com Ligia, os cursos terão como resultado uma montagem desenvolvida profissionalmente. “Eles apresentarão uma cena curta. A ideia é ser um produto autoral, pensando em tudo, trilha, construção de cena... queremos que eles tenham isso. É um processo que passa por tudo que é o teatro, mas é rápido”, comentou.
Sobre o processo de investigação, Ligia disse que o trabalho pretende cultivar o respeito entre os alunos e profissionais. “Não tem mais que existir o diretor que grita com o ator. Nós precisamos parar de validar o assédio, precisamos primar pela ética profissional. Entender os limites de uma relação trabalhista. Poxa eu vou trabalhar com alguém que não me respeita? Se você passa desse ponto é convidado a se retirar, lá nutrimos respeito. É um lugar que existe a princípio o respeito e o carinho”.
Formada em Artes Cênicas em Lisboa, Portugal, Kelly Figueiredo, retornou à Campo Grande em 2014, ocasião em que passou a integrar o Grupo e hoje é uma das professoras. “Essa família me acolheu quando eu cheguei. Fiquei 12 anos lá em Lisboa e quando cheguei aqui tinha muita dificuldade, mas encontrei o Casa e me identifiquei. Era um ambiente que remetia o que eu estava vivendo lá. Casa é um lugar onde estou me construindo como artista”.
Ligia disse que ela e Kelly atualmente trabalham bastante juntas e a arte que elas fazem, une, acolhe. “O Casa é uma casa para que os alunos e colaboradores possam contribuir e receber. Quem vier fazer o curso conosco saiba, amor e teatro estarão unidos lá”, finalizou.
Para se inscrever e receber mais detalhes de cada curso. Ligue (67) 98185-9774.