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"SEM MEDO"

Zé Pequeno morre após agressão de amigo, mas permanece lenda na Capital

Homem sem medo, Zé foi agredido aos 86 anos em 4 de dezembro, no Bairro Universitário, onde vivia desde 1972 e onde tem espaço nos imaginários e contos populares

Esse é Zé Pequeno - Reprodução/Divulgação

‘Lenda viva’, assim Jorge Cabral, de 56 anos, resumiu seu pai, José Cabral Leandro, conhecido como Zé Pequeno. Uma figura que virou lenda de fato no Bairro Universitário, em Campo Grande. Zé Pequeno faleceu aos 86 anos, no início deste ano, em 2 de janeiro. Zé morreu após ser agredido por um amigo, em 4 de dezembro, com quem já havia bebido várias vezes.  “O cara era amigo dele, já bebeu muito nas custas dele. Era amigo, mas dizem que o cara mexe com drogas, eu não posso afirmar. Meu pai foi agredido muitas vezes, mas por pessoas estranhas. Uma pessoa conhecida foi esse cara, que deu um soco nele, ele caiu e bateu a nuca no meio fio”, contou o filho.

Foi o próprio suspeito identificado com 'Juruna' quem levou Zé Pequeno até a Unidade de Pronto Atendimento do Universitário, onde ele ficou internado até o dia de sua morte. No entanto, quem morreu foi José Cabral Leandro, pois o Zé Pequeno, nascido em Mombaça, homem bravo, que não se intimidava a apelidar outras pessoas, esse não morreu e segue vivo nos contos e nos imaginários dos moradores do Bairro Universitário.  

Nascido em 15 de maio de 1936. Zé cresceu em Mombaça, no Ceará, onde trabalhou como vendedor de várias coisas, tendo sido noivo pela primeira vez aos 10 anos de idade. Zé, que de pequeno só tem o apelido, sobressaiu ao seu tempo, sendo ousado, aos 30 anos de idade, procurou o pai de Maria da Glória Silva Leandro dizendo que queria se casar com ela, que para isso só precisava de um caminhão e um pedaço de terra.

Zé e Maria viveram até a partida de Maria, aos 61 anos de idade. Foto: Reprodução/Arquivo pessoal 

O pai da esposa dele por sua vez aceitou, mas não o deu o caminhão, apenas a terra em Mombaça. Com isso, em 1963, Maria casou-se com Zé, e durante 5 anos tentou a vida na cidade, onde tiveram seus 3 primeiros filhos, de um total de 7 filhos.

Zé, os filho e Maria, foto tirada há 15 anos. Foto: Arquivo pessoal 

Em 1969 Zé deixou Mombaça, no Ceará, e veio para o ainda estado de Mato Grosso. “Veio com a cachorra a mulher e os três filhos (duas meninas e Cabral, seu filho mais velho)”, disse o próprio Cabral ao explicar que a ‘cachorra’ na verdade é como são chamadas as malas de viagem no Nordeste. "Assim que ele chegou aqui ele começou a vender água na rua, depois ele comprou uma cargueira e começou a descobrir as feiras e os mercados... ele já fazia isso no Nordeste. Aí ele começou a melhorar, na época ele chegou a ter 3, 4 caminhões... Ao invés de comprar mais imóveis, ele na verdade pensou: vou trazer toda a minha família do nordeste. Ele chegou a trazer 50 pessoas do nordeste para Campo Grande", introduziu Cabral.  Nessa época Zé comprou 35 passagens de ônibus, além de seus parentes, ao menos 8 pessoas que migravam do Nordeste ficaram na Casa de Zé, após se conhecerem no Hotel Paris, no Bairro Universitário. 

Família juntamente com Zé, em foto antes da pandemia. Foto: Arquivo pessoal 

Em 1972 começou a história de Zé Pequeno com o Universitário, quando comprou uma casa no local, e por anos seguiu trabalhando como vendedor, ao passo que ia se tornado uma figura icônica no bairro.  

Em 1977 chegou em MS a última leva de parentes de Zé trazidos do Nordeste. "Um irmão da minha mãe, foram os últimos a chegar", lembrou. O ano lembrado pelo filho de Zé Pequeno é marcante, pois também é o ano que o Estado de Mato Grosso do Sul nasceu. E a cidade onde acabavam desembarcar, viraria a Capital.  E também foi nesse ano que Cabral registra como uma das primeiras falências do pai, que para trazer todos seus familiares teve que vender os caminhões de verdura e recomeçar. “Todos os parentes que ele trouxe para cá seu deu bem...todos eles são gratos a ele por isso, eles choram...sabem e são gratos, apesar disso alguns brigaram com ele devido o jeito difícil dele”, explicou. 

Esse é Jorge Cabral, de 56 anos, filho de Zé Pequeno. Foto: Tero Queiroz | MS Notícias

Cabral faz questão de lembrar do pai pelas brincadeiras. "Ele chamava todo mundo de corno, tanto que hoje lá no bairro quando alguém trai, eles dizem: 'bem que Zé Pequeno' avisou", contou. Um misto, além de brincalhão, era também um homem nervoso, de bom coração e comerciante.

Zé Pequeno veio para o MS trabalhar com venda, e fortificou-se no ramo das verduras e legumes. "Ele tinha um tino para o comércio, era muito esperto. Tinha um ponto enorme na Feira-Central, mas aí veio o Ceasa e ele não acompanhou", explicou. Zé também trabalhou no Mercadão Municipal tendo uma banca lá, até que com a evolução do mercado, começou a falir em 1984. "Meu pai ficou rico 10 vezes e faliu 11... Essa de 1984 foi a nona falência dele, ele tinha um ponto de caminhão no Mercadão e tinha na Feira, veio o Ceasa e ele ficou perdido no tempo", disse Cabral.  

Zé era um grande comerciante, mas ao longo da vida se arriscou em outras atividades. Foto: Arquivo pessoal

Sem ter como trabalhar como 'verdureiro' nos pontos costumeiros, homem de muitos contatos, Zé Pequeno descobriu uma possibilidade comercial em um garimpo na Região de Peixoto de Azevedo (MT), local para onde levava verduras de Campo Grande para vender. Após um tempo trabalhando em Peixoto, não conseguiu muito dinheiro pois ele gastava com mulheres e cachaça. "Ele se envolvia muito com mulher e o dinheiro ia indo ", lembrou Cabral. Para solucionar o problema, Zé Pequeno encontrou outra possibilidade de lucro no local, mas uma atividade perigosa. "Ele montou um jogo do bicho em Peixoto, ao notar que não tinha... a região não era explorada, mas tinha dono, era do Arcanjo. Aí que ele escapou da morte", relembrou Cabral, que teve que ir morar com o pai por um tempo em Peixoto. 

O dono da área explorada por Zé por três anos era João Arcanjo Ribeiro, apontado pela Polícia Civil como o 'cabeça' de organizações criminosas que comandam o jogo do bicho em Mato Grosso. Ao saber que Zé Pequeno estava com atividade do jogo em Peixoto, Arcanjo teria mandado, segundo Cabral, capangas armados até o local para emitir em primeiro momento um aviso. "Mandou 6 capangas armados, foram lá, primeiro diz que era para varrer..., mas avisaram: ó, Zé Pequeno e bravo! Ele peitou os caras, mas os caras falaram: ó, seu Zé, tem que fechar, o homem lá manda... aí meu pai falou com os sócios dele e fecharam. Não tinha como peitar os caras", disse o filho Ao encerrar as atividades de jogatina no garimpo, Zé continuou vendendo verduras no local. 

Apesar de ter acumulado algum dinheiro com as atividades do jogo, Zé descobriu posteriormente que no tempo que ficou no garimpo acabou sendo passado para trás por contadores. "Ele aposentou tarde porque no garimpo, os caras, os contadores não recolhiam o INSS dele. Ficou um monte de carnê para trás", explicou Cabral.  "Ele tinha tino comercial, mas não tinha administração... eu viajei com o ex-sócio dele, o caderno do meu pai era um de 50 páginas tudo remontado, sem datas, não sabia quando vendeu...meu pai levou prejuízo de milhões, como o giro dele era muito grande, carga sobre carga, ele não percebia", detalhou. "Ele não conferia nada, foi roubado por um cara que fornecia melancia de Presidente Prudente...Ele só descobriu porque um cara, um fazendeiro, não aguentou, pegou uma caminhonete e veio o avisar", pontuou.

Mesmo nunca tendo tido escolaridade, Zé Pequeno aprendeu a ler e sempre incentivou os filhos aos estudos. Zé confiava sem precedentes na bondade do próximo. Ao retornar para Campo Grande, Zé foi convencido por um vizinho a investir o dinheiro que tinha em terras. Uma fazenda de 42 hectares, em Paulistana, no Piauí, com um rio que a atravessava, foi a boa proposta apresentada a ele. Em troca, Zé daria seu dinheiro e a casa que tinha no Universitário. "Ele aceitou, eu fui com ele até Teresina (PI), mas deixei ele e os mais novos, pois fui fazer vestibular no Ceará. Ele levou quase toda a família, só dois ficaram: 'um já era casado, morava em São Paulo e a outra ficou aqui, não queira ir. Meu pai falou: só fica se casar, que ele era das antigas... queria ficar morando sozinha, ela tinha 18... 19 anos. Ele falou não, só se casar. Aí ela já tinha um namorado, aí teve que fazer casamento às pressas. Ela acabou se casando em Terenos", disse. Assim Zé foi para a fazenda no Piauí, chegando lá teve uma surpresa. "Tinha mesmo o lugar onde ficava o rio, mas só tinha o buraco lá, porque água não tinha...", disse aos risos o filho ao lembrar da situação. Acabou tendo que vender a fazenda, por R$ 40 mil, e acabaram voltando para Campo Grande, onde moravam de aluguel por um período, ainda no bairro Universitário, até que Zé comprou a casa onde viviam na esquina com a escola.  

Essa foi a última aventura de Zé para longe do Universitário. Depois disso, o Pequeno só cresceu, quando caminhava pelo bairro era reverenciado e igualmente odiado por alguns que não o compreendiam. "Meu pai se aposentou, vivia feliz no bairro, foi um homem leve. Não gostava de cumprir quarentena, escapava, conseguia pular um muro de 3 metros. Ele nasceu livre, tinha como inspiração o Lampião (Cangaceiro)... cara, uma figura, meu pai me ensinou que a leveza da vida, a beleza da simplicidade, era amado e odiado, mas a grande maioria no bairro o amava, pois ele era o símbolo da liberdade”, contou emocionado Cabral. 

Último livro que Zé lia e que não concluiu até sua morte. Foto: Tero Queiroz | MS Notícias 

Zé, que aprendeu ler sozinho, ainda esperava concluir a leitura de umas das biografias do Lampião. Ele também garantiu o título de grande mestre da matemática, dizia que sabia cubicar madeira. 

O ator, diretor e iluminador, Espedito Di Montebranco, morador do bairro Universitário resumiu o que a figura de Zé representou para ele, ao longo de seu crescimento no bairro. “O Zé Pequeno, Zé Mineiro, Cambé são moradores antigos que eu cresci vendo e convivendo. Tinha também o velho da matemática que se dizia primo do Pelé e tinha contas mirabolantes e fórmulas matemáticas das mais loucas na cabeça. Cada um com sua forma e jeito de ser. O Zé pequeno tirava sarro de todo mundo, tinha sempre uma piada pronta e uma pegadinha de duplo sentido na ponta da língua. Recentemente já velho, continuava a andar pelo bairro e todos o conheciam pelas piadas. Os mais jovens e desconhecidos talvez não entendessem o jeito brincalhão dele, o mundo moderno só permite as piadas de internet. Qualquer piada feita presencialmente para muitos já ofende. Eu me acostumei e feito o ator Rubens Correa ou o próprio Antonin Artaud (poeta) aprendi a gostar dessas figuras, a quem muitos consideram loucos por dizer o que pensam. Vejo que são figuras símbolos da liberdade”, disse.

Espedito também citou outra lenda do bairro,  o 'Chico Carroceiro', considerado o fundador do bairro em 1969. "Chico salvou o Zé da morte num caso épico de agressão que sofreu", destacou.  

Seu filho mais velho, Cabral, explicou que deseja apenas que o suspeito da agressão, amigo de Zé, deve pagar à Justiça. Segundo argumentou a esposa do suspeito, Zé estaria armado com uma faca e durante briga na Rua Elvira Pacheco Sampaio, teria partido para cima do amigo. “Era chamar a polícia né, se ele estivesse mesmo armado era só chamar a polícia. O cara conseguiu agredir ele”, finalizou Cabral. 

A grande família deixada pelo lendário foi a missa de sétimo dia realizada para Zé Pequeno. O evento religioso foi trasmitido no Facebook, veja AQUI.