16 de novembro de 2024
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Há 30 anos, o dia nasceu feliz com fim da ditadura

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Naquela segunda-feira, há 30 anos,  a ditadura acabou. Apurados os votos do Colégio Eleitoral, que se reuniu pela última vez no plenário da Câmara dos Deputados, Tancredo Neves, candidato da Aliança Democrática (PMDB/Frente Liberal, composta por dissidentes do PDS) foi eleito presidente para um mandato de seis anos por 480 votos (72,4%) contra 180 (27,3%) dados a Paulo Maluf, do PDS.   Não se tratava apenas da eleição do primeiro presidente civil mas do enterro da ditadura que já durava 21 anos.

Quase todos, inclusive ele, o eleito, desejaram outro enterro para a ditadura mas este foi o final possível. No ano anterior, apesar dos milhões de brasileiros que foram às ruas pedir diretas-já, o regime ainda teve fôlego para impedir a aprovação da emenda Dante de Oliveira. A eleição de Tancredo pelo Colégio Eleitoral tão execrado, com apoio de dissidentes do regime, expressava um pacto com o país. Para compensar a falta de legitimidade da eleição indireta, Tancredo voltou às ruas e às praças em que meses antes soara o grito pelas diretas, agora com a campanha “Muda Brasil”. Ainda que a mudança viesse pior vias tortas. Veio.

No dia seguinte, na primeira edição do Rock In Rio, enrolado na bandeira do Brasil, Cazuza fez um discurso emocionado saudando a democracia, antes de cantar “Para a manhã nascer feliz”.    Estes acontecimentos não foram vividos pela maioria do que neste final de semana foram ou irão às ruas protestar.  Não carregam cicatrizes, não cantaram “Apesar de você” naquele janeiro de 1985. Felizes os filhos da democracia.

O resultado numérico da eleição indireta foi um passeio mas o medo de um retrocesso, de uma reação dos quartéis, persistiu o tempo todo. E se eles resolvessem recrudescer, como dizia o ultimo general presidente, João Figueiredo?

Eleito, Tancredo fez uma longa viagem internacional, encontrando chefes de governo e de Estado, e também o Papa, para apresentar o projeto democrático brasileiro que começava a engatinhar. E de quebra, abrir diálogo sobre a elevada dívida externa do país.  O medo do retrocesso voltou, logo depois, quando ele adoeceu na véspera de assumir a Presidência. A posse do vice José Sarney teve que ser negociada madrugada afora. Negociações que envolveram o chefe da casa civil, o ministro do Exército, o presidente do STF e os dirigentes do Congresso. A longa noite de cristal terminou na Granja do Riacho Fundo, onde morava Leitão de Abreu, o chefe da Casa Civil: Sarney seria empossado.   Figueiredo não gostou, saiu pela porta dos fundos.

Contada hoje, a transição parece um passeio mas foi um banho de sangue. A ditadura mergulhou fundo no autoritarismo em 1968, com o AI-5, que permitia ao presidente cassar mandatos, gerir a censura, fechar o Congresso, suspender o habeas corpus, interferir no Judiciário. Mas não só ficou nisso. A tortura já era praticada mas a partir de então se institucionaliza. Surgem os “porões” oficiais, o DOI-CODI, a Oban, as casas da morte e tudo o mais.

Na passeata dos cem mil, em 1968, uma ala gritava. “O povo, unido, jamais será vencido”. Outros replicavam: “somente a luta armada derruba a ditadura”.  Estes últimos, sem qualquer caminho pela frente, tentaram a resistência armada. Foram dizimados. Na tortura, em confrontos de fato, em confrontos simulados para justificar fuzilamentos e ciladas. Outros foram “suicidados”, alguns sumiram sem deixar vestígios. O mesmo aconteceu lá no Araguaia, com os guerrilheiros do PC do B.

Depois da longa escuridão, depois de silenciados os movimentos sindical e estudantil, de amordaçado o Congresso e amedrontada a sociedade civil, o povo brasileiro começou a se unir nas lutas democráticas pela anistia, pelas diretas e pela Constituinte.         No Congresso, que a ditadura fechou três vezes, a resistência parlamentar também não pode ser esquecida. Neste Congresso, hoje espezinhado, alguns foram vassalos da ditadura mas muitos pagaram com a perda do mandato por combater e denunciar os crimes do regime. A ditadura cassou 173 deputados e oito senadores.   Ulysses Guimarães expôs-se numa anticandidata contra Geisel na eleição indireta de 1974, sabendo que as cartas estavam marcadas. Mas com este pretexto, ele e seu companheiro de chapa, Barbosa Lima Sobrinho, correram o Brasil pregando a volta do Estado de Direito.  Esta campanha ajudou a acordou o gigante adormecido pela censura e a repressão. Meses depois, na eleição para o Congresso, o PMDB impôs uma severa derrota ao regime, elegendo a maioria dos senadores e quase dobrando sua bancada na Câmara.

A partir de então a oposição foi acumulando forças até o 15 de janeiro de 1985 em que Tancredo foi eleito. Com ele morto, Sarney honorou os compromissos da Aliança Democrática, com um olho nos quarteis e outro no Congresso. Começou a remover o entulho autoritário e convocou a Constituinte, que em dois anos de intensa participação popular no processo, passou o Brasil a limpo, escrevendo a Carta que é a base da democracia que temos hoje.

Por ter sido longa e pedregosa a estrada, por tantos que tombaram no caminho, pelas feridas e pelas cicatrizes deixadas pela luta, os verdadeiros democratas não podem compactuar com qualquer aventura que atente contra o Estado Democrático de Direito, esta expressão que nos soava tão bonita e tão distante naquele tempo. Pensem nisso os que execram a política, os que apedrejam a representação popular, os que falam em impeachment como expediente banal para depor presidentes.  A Constituição que nos tem dado tão longo período democrático, o mais longo de nossa história, pensou neste remédio amargo para situações extremas, mas definiu-as com absoluta clareza.

Pensem nisso os filhos da democracia que estarão nas ruas hoje.