Com apenas 116 anos de existência, faltam pouco mais de 100 mil nascimentos para Campo Grande chegar ao seu primeiro milhão de moradores, e nem assim, na vertiginosa velocidade de seu crescimento, Campo Grande conseguiu evitar que em menos de cinco anos a população fosse agredida violentamente por um desastre político-administrativo que manchou e interrompeu sua centenária marcha de progresso.
Da cidade que se exibia ontem, altiva e deslumbrante, hoje o que se vê é uma triste sequência de cenários urbanos tomados pela sujeira, buracos, desordem no trânsito e caos nos diferentes compartimentos de serviços essenciais à comunidade, como a saúde, o transporte publico, a segurança e a mobilidade. O pior, e mais lamentável, é a queda ruidosa da auto-estima de homens e mulheres que, além de viver numa cidade largada à própria sorte, ainda são os únicos que pagam pelos desmandos cometidos por quem tinha a obrigação moral e constitucional de cuidar das pessoas e do município.
Atropelo - A ferida começou a revelar-se no real tamanho de sua gravidade em 2012, quando o prefeito Nelsinho Trad, na reta final de seu segundo mandato, atropelou lógicas éticas, políticas e administrativas para entregar os cofres da municipalidade a empresas mais interessadas no butim do Tesouro que no compromisso com o bem-estar e a cidadania dos munícipes. Por meio de licitações e intervenções postas sob suspeita pelo Ministério Publico, a Prefeitura pôs dotações bilionárias nas mãos de empresários amigos para serviços de transporte coletivo, abastecimento de água e esgoto e coleta e tratamento de lixo.
Para isso, o prefeito peemedebista recorreu a criativos procedimentos em brechas da lei, pelas quais infiltraram-se as empresas e consórcios que tomaram conta das planilhas de obras e serviços tocados com recursos públicos municipais e federais. No centro dessas operações, os empreendimentos capitaneados pelos xarás João Amorim e João Baird, dois dos principais fornecedores de verba e estrutura logística de campanhas eleitorais de candidatos e partidos de diversos matizes.
Em outubro de 2012, por exemplo, o consórcio Campo Grande Solurb ganhou licitação para fazer em 25 anos a coleta e tratamento de lixo, inicialmente com valor anual de R$ 52 milhões 157 mil 648,73 (ou R$ 4,346 milhões/mês). Esses valores foram reajustados ao longo do tempo, de acordo com a demanda. O consórcio foi um arranjo entre a LD Construções Ltda e a Financial Construtora. LD são as iniciais de Luciano Dolzan, genro de Amorim. Sob suspeitas, o contrato sofreu questionamento judicial de um empresário que garantiu ter ocorrido fraude no processo licitatório para favorecer o consórcio vencedor. Em novembro de 2014, quando o prefeito era Gilmar Olarte (PP), o Tribunal de Justiça aceitou apelação da Prefeitura e manteve o resultado da licitação.
Sangria - Instalados em definitivo desde a gestão de Nelsinho Trad, os esquemas de Amorim e Baird vinham, sistematicamente, sangrando os orçamentos da Prefeitura. E para não perder esse controle ambos tramaram a degola do prefeito Alcides Bernal para ungir o vice, Gilmar Olarte, de quem, em troca pela titularidade do cargo, receberiam a garantia de continuar com o controle das obras e serviços. Para faturar, a dupla abriu uma rede com dezenas de tentáculos empresariais que abraçam as contas do Município, como, por exemplo, a empreiteira Proteco (de Amorim), a Itel Informática (de Baird) e a Solurb (em nome de Luciano Dolzan, o genro).
Ainda não se sabe o total exato ou aproximado de quanto em dinheiro publico foi desviado por esses esquemas, mas os levantamentos preliminares em investigações e denúncias do Gaeco (Grupo de Apoio Especial de Combate ao Crime Organizado), Ministério Publico, Polícia Federal e Controladoria-Geral da União encontraram indícios de que as obras e serviços com a presença de empresas envolvidas envolvem bilhões.
Nesta contabilidade a soma cresce, e muito, se forem incluídos os valores pertinentes aos serviços de transporte coletivo e abastecimento de água e esgoto. Em comparação a grosso modo, pode-se dizer que são duas atividades tão rentáveis que se assemelham a minas de ouro no asfalto. O contrato inicial com a Águas Guariroba quer terminaria só em 2030, foi prorrogado por Nelsinho Trad por mais 18 anos e sete meses, com a Prefeitura desembolsando, em valores de três anos atrás e sem correção, R$ 636 milhões. No transporte coletivo, outra história, as facilidades de lucro para quem opera são inimagináveis e o custo-benefício é deficitário apenas para o usuário, que mesmo com a redução da alíquota da ICMS do diesel ainda não foi contemplado com a redução da tarifa.
Quem paga - Por força dessas pilhagens, cidadãos e cidadãs de Campo Grande hoje são meros contribuintes com a obrigação de continuar pagando para viver numa cidade onde a qualidade de vida despencou assustadoramente. Já foram realizadas várias diligências policiais e intervenções do Judiciário; prefeitos e vereadores entraram e saíram, e apesar dos fartos indícios levantados pela Polícia nenhuma das pessoas envolvidas nos escândalos foi alvo de rigorosa e definitiva punição.
Não se sabe quando acontecerá o julgamento e quem será indiciado. A Justiça devolveu o cargo a Alcides Bernal ao reconhecer que seu vice o substituiu beneficiado por um processo irregular, legalizado por uma votação da Câmara Municipal, na qual 23 vereadores determinaram a cassação do prefeito. Destes parlamentares, apenas nove foram afastados. Os outros 14 estão sendo chamados para depor, como testemunhas, embora o Gaeco tenha recolhido escutas telefônicas que abrem suspeitas contra boa parte desse grupo.
Enquanto a novela se arrasta, a capital de Mato Grosso do Sul é um poço fundo de insatisfações e baixa auto-estima. O salário dos servidores em atraso; a Educação gravemente golpeada, com os professores e alunos sem saber como recompor o ano letivo após a prolongada greve, à espera de decisões judiciais sobre ajustes salariais. As unidades de saúde, no rescaldo de duas greves dos médicos, funcionam precariamente, algumas com goteiras em salas de procedimentos médicos.
O lixo toma conta de todas as regiões. A Prefeitura - que improvisa a ajuda de voluntários arregimentando catadores de recicláveis - recebe a determinação da Justiça para tomar providências e pressiona a Solurb. Com seus funcionários em greve por causa do atraso de salários, a empresa recebeu ordem judicial emitida no último domingo (13) para retomar a coleta de lixo na Capital. Na liminar, o juiz Maurício Petrausk obriga trabalhadores Sindicato dos Trabalhadores em Asseio e Conservação de Mato Grosso do Sul a retomarem a coleta nos 70 locais onde se encontram o lixo hospitalar do município. Segundo a liminar, caso Caso a ordem judicial não seja cumprida, a multa será de R$ 30 mil reais por hora de atraso.
Os donos da Solurb alegam não ter recebido dois meses de pagamento e por isso não honram a folha de seus trabalhadores. No entanto, este ano a empresa já abocanhou R$ 56 milhões, segundo o prefeito Alcides Bernal.
Entre moscas, fedor e esmurrado pela corrupção e pelo desalento do caos urbano, o campo-grandense, indignado, e à espera de uma resposta que não seja a de sempre, pergunta para quem de direito responda: tudo isso vai ficar por isso mesmo?