Foi necessário. E foi providencial. Aquele olhar curioso e sensível, guiado pela preocupação com sua ancestralidade e a saga civilizatória do próprio quintal, atreveu-se a desnudar a imensidão historiográfica, humana e sociocultural do continente sul-americano. São fatos, tempos, pessoas e sonhos, reunidos na mais ampla diversidade.
Foi assim que o olhar nativo de Mara Silvestre encarou, com firmeza e paixão, o desafio de resgatar um pouco do tanto que precisa ser resgatado ou redescoberto nas ancestrais e abertas veias da América Latina. Autora, diretora e proprietária intelectual do Festival de Rua do Toro Candil, de Porto Murtinho, ela define, com singeleza, a maiúscula importância da diversidade cultural como a melhor fotografia humanista para a integração continental.
E, além disso, oferece ao projeto do Corredor Bioceânico um carimbo de excelência em seus propósitos sociais, econômicos e ambientais. Afinal, quando esta rota de 3.320 km entre o Brasil, Paraguai, Argentina e Chile estiver concluída em todos os seus tramos modais, as cidades em suas áreas de influência estarão passando por mudanças profundas, com demandas para as quais não estão preparadas e que exigem respostas.
ANSEIOS

O olhar desenvolvimentista, mas focalizando anseios comuns de povos e cidades com diversas carências, fez Mara recorrer ao audiovisual para expressar estes sentimentos. Documentarista, roteirista e editora cinematográfica, pesquisou a fundo a importância da cultura e dos costumes no processo civilizatório nesta parte do continente. Reuniu tudo o que sabia desde a infância, pela família e por brasileiros e paraguaios em Porto Murtinho, e juntou aos registros colhidos nas longas e exaustivas andanças pela América.
Acumulou farto material de informações e peças registrais da produção artístico-cultural, do folclore e de rituais nativos de séculos passados. Um deles, originário da Espanha, é o Toro Candil, uma festa de inspiração religiosa trazida para o Paraguai e o Brasil. Ganhou diversas adaptações com motivos locais, entre os quais os atos devocionais em honra à Virgem de Caacupê, padroeira de paraguaios e murtinhenses, adornados por música, dança e cativantes teatralizações.

Com esta abundante matéria-prima, Mara Silvestre e sua produtora, a Água Comunicação, registraram sua propriedade intelectual e o projeto do Festival de Rua do Toro Candil. Uma festa popular de origem hispânica, criativamente fronteirizada com orações, procissão fluvial e manifestações de arte e cultura teatralizadas nas ruas. O protagonismo anônimo de gente simples do local enriquece e garante o brilho da celebração.
A TRÍADE

Na saga do Toro Candil, a produção de Mara encaixou uma tríade, também de audiovisuais, destacando três elementos de sustentação da história nos folguedos e devoções: “Las Promeseras”, que são as mulheres das promessas à virgem; “Os Mascaritas”, homens mascarados que fazem o desfile alegórico; e a “Pelota Tatá”, nome de um jogo em que os jogadores tentam apagar com chutes uma bola de papel em chamas. Agora, ela está preparando a edição do Toro Candil.
Todas as peças utilizadas nas representações teatralizadas do festival são confeccionadas e inseridas pelos inventivos habitantes da fronteira. E são indumentárias desenhadas com esmero para identificar os personagens. Máscaras, adereços, alegorias, cores, andores e outras peças fazem parte deste formidável laboratório de inteligências nativas. O esforço e a extrema dedicação do povo neste labor criativo são de um arrebatamento único. No entanto, para que protagonistas, símbolos e ornamentos da festa cheguem às ruas, há outro desafio: dinheiro para sua realização.

Mara idealizou e realizou por conta própria o I Festival de Rua do Toro Candil em 2015, com apoio institucional da prefeitura murtinhense. Três anos depois, veio socorro do FIC (Fundo de Investimentos Culturais) para a segunda edição. Na terceira, em 2023, uma emenda do deputado federal Vander Loubet viabilizou o evento. E em 2024, numa produção independente, somou recursos próprios e de uma emenda do deputado estadual Zeca do PT para oficinas de customização e manufaturas, além do apoio institucional da prefeitura. A quinta edição está sendo preparada.
VISIBILIDADE

O festival – oficializado por um projeto de Zeca do PT como Patrimônio Cultural e Imaterial de Mato Grosso do Sul – é um atrativo que vem despertando interesse além das fronteiras estaduais, com ampla visibilidade. É um dos principais atrativos do calendário turístico e cresce como indutor de negócios, incorporando as economias criativas e colaborativas. Suas oficinas de criação, as apresentações simbólicas e os debates nas escolas reforçam as alternativas de divulgação. Em 2024, o portal Campo Grande News elegeu “Toro Candil e os Mascaritas” a Foto do Ano. E a Fundação Municipal de Cultura exibiu imagens do festival nos totens da Feira Central de Campo Grande.
“O registro audiovisual é que deu, na prática, o protagonismo aos atores de todas as pessoas que carregaram e acoplaram seus tijolos nesta construção, que deságua como patrimônio cultural e turístico único da América Latina e do Corredor Bioceânico”, assinala Mara. Ela reitera que o integracionismo pulsa nas veias familiares, na essência do seu habitat e nos conhecimentos adquiridos em diversas experiências de vida nos territórios latino-americanos.