om um protagonista tão reservado, a vida de Lourival Bezerra de Sá e o encerramento dela dependem da narrativa de coadjuvantes ou então da Justiça. Sem um prazo para que o corpo de Lourival seja enterrado, um pedido da Aliança Nacional LGBTI+ foi feito ao Estado.
Hoje, se Lourival fosse um homem trans, teria acesso à mudança de todos os documentos, ao que tudo indica, foi o que ele fez por conta própria em 1968. “O Lourival, no mundo legal, não existe e a gente tem que saber quem está por trás dele, porque existe uma família que tem uma pessoa que está desaparecida e biologicamente é uma mulher”, declara a delegada responsável pelo caso, Christiane Grossi.
Desde que o caso veio à tona, três famílias entraram em contato com a Polícia Civil. Uma por telefone, outra pessoalmente e a última por e-mail, acreditando que ele possa ter sido um parente que desapareceu no passado.
“Duas delas não se confirmaram, porque na data que a pessoa teria desaparecido, Lourival vivia em Cuiabá”, conta a delegada. A outra segue em investigação.
A Comissão da Diversidade Sexual da OAB acompanha o caso, bem como a Associação das Travestis e Transexuais de MS. “O objetivo da investigação é localizar a família, porque podem haver questões sucessórias a serem levantadas”, afirma Christiane. A Polícia também espera que os ofícios enviados aos quatro ventos por todo País retornem com alguma informação. Até para bancos foram encaminhados pedidos de cópias de documentos. “Estamos aguardando também exame de DNA e o laudo do exame de DNA”, completa a delegada.
Lourival só tinha um CPF em seu nome e, conforme investigação da Polícia, chegou a emitir um RG em 1968, quando tinha 29 anos. A morte dele, em outubro do ano passado, virou notícia, quando aos 78 anos depois de um infarto, o corpo ficou no Imol (Instituto Médico e Odontológico Legal) por não ter, segundo a Polícia, uma “identificação válida” para ser liberado.
“Seu Lourival foi uma caixa de segredos e até hoje nem a Polícia está resolvendo”, diz a cuidadora. Pela idade e experiência de vida, ela sabia que o então patrão e companheiro de casa escondia alguma coisa. Quando perguntava, ouvia como resposta que “a vida dele só cabia a ele”. Hoje, o pouco que se sabe de Lourival está como um livro aberto à procura de familiares e documentos que contem a sua história.
Para a cuidadora, Lourival só revelou o segredo de ter nascido mulher e com o nome de Enedina Maria de Jesus, porque sabia que estava vivendo os últimos dias. Agora, o que mais importa à companheira de casa é a liberação do corpo. “Por que? Porque a pessoa merece ser enterrada”.
Em ofício endereçado ao procurador-geral de Justiça, Paulo Cezar dos Passos e ao defensor público geral do Estado, Luciano Montali, a organização que trabalha com a promoção e defesa dos direitos humanos e cidadania LGBTI+ pede que a identidade de gênero de Lourival seja reconhecida “post mortem” e que ele seja enterrado como viveu.
No documento, a organização sustenta que a questão do gênero de Lourival foi resolvida pelo STF (Supremo Tribunal Federal) quando o plenário julgou desnecessária a cirurgia de transgenitalização para o direito à substituição de prenome e sexo diretamente no registro civil. “Lourival era um homem. A seu modo, nascido em novembro 1939, afirmou a todos, até mesmo pelos relatos colhidos pela reportagem, ser do gênero masculino”, diz a nota.
Ainda no ofício, a organização afirma que além da coleta e preservação de impressões datiloscópicas ou coleta e preservação do material biológico, as autoridades podem fazer o registro civil tardio de nascimento.